Quarta-feira, 25 de dezembro de 2024
Por Redação O Sul | 24 de outubro de 2017
Margaret Renkl, em um de seus artigos para o jornal The New York Times mais recente, relatou que, há alguns anos, quando ainda havia três adolescentes em sua casa, entusiasmou-se durante o jantar e começou a falar sobre o brilhantismo de um livro que estava lendo. “Você gosta tanto dessas coisas, não creio que ainda não conhece a Inglaterra e a Irlanda”, comentou um dos seus filhos.
“É, mas é caro. Primeiro eu não tinha dinheiro, depois vieram vocês. Um dia, quem sabe”, disse.
Cético, seu filho não se satisfez. “Antes de entrar na faculdade, o papai fez a Europa de bicicleta, sozinho, em nove meses. Você poderia ter feito o mesmo se realmente quisesse.” Seu marido havia trabalhado para comprar a bicicleta com que viajou pela Europa, aos 19 anos. Sozinho.
Margaret relata ter ensinado aos filhos a se levantar quando entrasse um adulto no recinto. A colocar o guardanapo no colo, não falar de boca cheia, a defender alguém que estiver sofrendo bullying. O que não lhes ensinou, e, segundo ela, só pensou nisso naquele momento, foi como viver a vida sendo mulher — e os cálculos mentais necessários para estacionar o carro, pegar um elevador ou mesmo fazer uma caminhada.
“É perigoso para uma mulher acampar sozinha. Tem as que se arriscam, mas eu não sou tão corajosa”, disse.
Os filhos de Margaret, relata, cresceram ouvindo as histórias das aventuras do pai, mas nenhuma dela. Nunca contou do “amigo” da família, um garoto de 16 anos que uma vez ficou com ela quando os pais dele e os dela saíram para jantar quando ela tinha onze — e como ele a ficou seguindo pelo apartamento, mexendo na sua blusa, puxando o elástico da sua calça e insistindo para que ela a tirasse, até que não aguentou e se trancou no quarto, para só sair quando seus pais voltaram.
Nunca contou da vez que acompanhou uma amiga à loja de ferragens da cidade, quando tínham 14 anos — nem que ela usou o dinheiro que ganhara como babá para comprar uma chave de fenda e uma trava para manter o irmão mais velho afastado do seu quarto à noite.
Nunca contou do seu primeiro emprego, ao completar 16 anos — nem de como o gerente corpulento ficava inventando desculpas para ir à despensa toda vez que estava na fritadeira, como ele se espremia entre ela e o balcão. “Esfregando a virilha no meu traseiro”, escreve Margaret.
Nunca contou nada da época da faculdade — nem da vez em que teve que ligar para a polícia por causa do sujeito escondido na moita em frente de casa.
Margaret comenta que essas histórias, segundo ela nada incomuns, fazem parte das experiências diárias de praticamente todas as mulheres que conhece, ainda que raramente compartilhadas.
É aí que ela aborda “a avalanche de histórias” que invadiu o Twitter e o Facebook como algo poderoso. “Começou em 5 de outubro, quando o ‘New York Times’ publicou a primeira acusação de assédio sexual contra o produtor de Hollywood, Harvey Weinstein , mas já tinha virado um monstro, dez dias depois, quando a atriz Alyssa Milano tuitou: Se você já foi assediada ou agredida sexualmente, responda este tuíte com um ‘me too’ (‘eu também’).”
Margaret lembra que em questão de minutos a hashtag #MeToo já tinha tomado conta da rede: foram 500 mil respostas no Twitter e doze milhões no Facebook só nas primeiras 24 horas — e a enxurrada não dá sinais de diminuir. Os números só fazem crescer com as mulheres contando as histórias de homens que usaram o poder para subjugá-las ou coagi-las.
Em seu artigo, Margaret diz: “Não conheço uma única que se surpreenda com essas histórias ou com os números estratosféricos. Só os homens. Alguns — cerca de 300 mil — estão escrevendo para contar que também foram vítimas de assédio, já que a violência e o abuso do poder obviamente não são uma questão de gênero ou orientação.”
Há também outras hashtags próprias criadas após o caso, relata, como #IHearYou (“Estou Te Ouvindo”). “São homens, como meus filhos, que nunca souberam desses relatos antes porque, durante muito tempo, as mulheres acharam que não eram válidos. Ou porque quase sempre não eram levadas a sério.”
Margaret também conta que a ironia do fato de o livro do qual estava falando para os filhos ao jantar naquela noite era “Quarto”, de Emma Donoghue, sobre uma mulher sequestrada do campus universitário e mantida como escrava sexual em um galpão de quintal.
Mesmo lendo aquela história tão bonita, tão comovente, não lhe ocorrera confessar todas as vezes que quis sair para acampar, caminhar, ou viajar e não foi porque não encontrou quem fosse com ela e não teve coragem de ir sozinha.
A autora finaliza afirmando que a lista de perigos reais e imediatos enfrentados pelas mulheres é crescente e pode ser atribuída diretamente a homens que se gabam de poder violar mulheres que desejem e ainda não tenham sofrido consequências por isso.