Quarta-feira, 27 de novembro de 2024
Por Redação O Sul | 11 de outubro de 2020
Grupo de torcida feminina Loucas por Ti, do Corinthians
Foto: Arquivo pessoal“Uma mulher é estuprada a cada 11 minutos no Brasil. Enquanto você lê esta reportagem, uma mulher está sendo estuprada. Ao mesmo tempo, enquanto você lê esta reportagem, um estuprador está sendo exaltado no país”. A reflexão é de Analu Tomé, 50, uma das fundadoras do movimento feminista de torcedoras corintianas “Toda Poderosa”. O dado apresentado por ela foi coletado e apresentado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Analu se refere à chegada de Robinho ao Santos —o anúncio foi feito no sábado (10). Em 2017, na Itália, o atleta foi condenado a nove anos de prisão por “violência sexual em grupo”. O jogador nega as acusações, e o processo ainda tramita na Justiça italiana. Mas para representantes de grupos de mulheres torcedoras, a opinião sobre a contratação é unânime: é uma nova violência. Este é o sentimento inclusive entre mulheres santistas frequentadoras de estádios.
Mariana Paquier, 26, é uma das coordenadoras do grupo Bancada das Sereias —movimento de mulheres santistas que se unem para, juntas, irem ao estádio. Fã de futebol desde a infância e, hoje, à frente do grupo, ajuda a organizar ações sociais que auxiliam mulheres torcedoras. A Bancada das Sereias conta, ainda, com ajuda de psicólogas e promove reuniões e debates acerca do feminismo.
Ela afirma que vê a contratação do jogador como um movimento “totalmente inaceitável”. E desenvolve. “Como mulher e torcedora, não me sinto só desrespeitada. Me sinto totalmente violada. Isso é uma violação. O Santos promove campanha no Dia da Mulher, campanha contra a agressão, mas na hora de colocar toda essa teoria em prática, não o faz. É muito fácil promover o markerting, mas, em pleno 2020, trazer um jogador condenado por estupro é inaceitável”, afirma.
Mariana é advogada e entende que há, ainda, mais instâncias para que Robinho recorra da condenação. “Ainda assim, existe uma primeira condenação. Não tem que trazer. Ontem foi um dia muito triste para nós, mulheres santistas. As redes sociais bombaram de comentários machistas —e o mais triste foi ver muitas mulheres dizendo coisas horríveis”, diz.
Segundo a torcedora, o grupo vai soltar uma nota de repúdio, uma vez que “a Bancada das Sereias não só não apoia como repudia a vinda do Robinho”.
Reações de outros grupos
A analista de mídias sociais Analu Tomé criou o grupo “Toda Poderosa” em 2016, com o intuito de ocupar espaços majoritariamente masculinos: o estádio e o clube. Este ano, concorre ao conselho do Corinthians.
“Em 2018, passamos por uma situação similar. O Corinthians sondou o jogador Juninho, que respondia a um processo por violência doméstica. Quando a notícia chegou, a gente organizou uma grande mobilização —tanto em redes sociais como no estádio. O barulho chegou aos ouvidos do [presidente] Andrés [Sanchez] e ele desistiu da contratação. Pelo Twitter, disse que o fez porque não queria problemas com as torcedoras corinthianas”, afirma Analu.
A torcedora enfatiza a necessidade de ocupar espaços dentro do clube —entre dirigentes e conselheiros. “Os grandes dirigentes dos clubes são homens, heterossexuais e brancos. Eles não têm noção do que um estupro significa para uma mulher; do que é viver um episódio de violência doméstica. O Santos fez várias campanhas contra a violência de gênero, agora contratou um estuprador. É muita hipocrisia. É incoerente e revoltante”, pontua.
“A gente não tinha que estar discutindo esse tipo de coisa. Um cara desses deveria estar na Itália respondendo pelo crime dele e ponto. Mas está sendo ovacionado por aqui. Ser recebido com flores e palmas é um desrespeito não só com as torcedoras santistas, mas com todas as mulheres brasileiras. Com a mulher que, 10 minutos atrás, foi estuprada. Enquanto a gente não fizer um barulho bem grande, isso não vai mudar. E se a gente não ocupar esses espaços, vai ser bem difícil conquistar algo”.
Presidente do grupo Loucas por Ti, Corinthians, a pedagoga Karla Alves, 34, também relembrou o episódio envolvendo Juninho no clube. Foi enfática: “Fomos, ontem, às redes sociais para emitir uma nota de repúdio a respeito da chegada do Robinho. E fizemos o mesmo em 2018. Vale para todos: para o meu vizinho, para o meu companheiro, para o Robinho e para o Juninho. A gente tem que falar”, afirma.
O grupo começou em 2016, numa tentativa de unir mulheres torcedoras nas redes sociais. Hoje, o “Loucas por Ti, Corinthians” atua em ações sociais, visita abrigos e famílias carentes —principalmente com foco em mulheres. “A gente recebeu a notícia da chegada do Robinho no dia da conscientização sobre violência contra a mulher. É triste ver um time tão grande como o Santos com uma atitude tão pequena. Os times são vitrines, precisam dar o exemplo”.
Posição de ídolo
No Rio Grande do Sul, a repercussão também foi negativa. A torcida organizada só de mulheres Força Feminina Colorada vê a contratação de Robinho como uma naturalização da violência de gênero no Brasil. A presidente da torcida, Francine Malessa, 29, reitera que a violência de gênero não pode ser um troféu.
“O futebol coloca os homens num patamar de ídolo”, disse a torcedora. “Por que essa naturalização à violência contra a mulher no futebol? Isso é muito forte. Assim como naturaliza a violência de gênero, o futebol naturaliza a homofobia”.
A FFC não apenas discute assuntos relacionados ao esporte como faz parte de uma força-tarefa de mulheres no combate ao feminicídio do Rio Grande do Sul. O grupo é a única torcida organizada formada apenas por mulheres no Estado. Francine acredita que, por ser majoritariamente formado por homens, o futebol mantém o status de privilégio que permeia uma sociedade patriarcal.
“O futebol mostra que os homens ainda são intocáveis na sociedade. A gente fala todos os dias sobre violência contra a mulher, os clubes fazem campanha contra isso. E contrataram um estuprador; contratam feminicida, contratam acusados de violência doméstica. Que tipo de mensagem é essa?”, questiona a jornalista.
Francine se refere à contratação do goleiro Bruno Fernandes, em agosto, pelo Rio Branco-AC. A reportagem fez uma análise sobre a situação do goleiro, condenado por homicídio triplamente qualificado, sequestro e ocultação de cadáver de Eliza Samúdio, a mãe de um de seus filhos.
“Não me surpreende, mas me abala”
Para Alana Katano, 25, fundadora do grupo “Movimento Alvinegras”, casos como o de Robinho, de Jean [ex-SPFC], de Bruno Fernandes e de Cuca —todos envolvidos em crimes contra mulheres— são perturbadores. “É perturbador saber que a vida ou a integridade física e moral de qualquer mulher está abaixo do poder do futebol”, afirma.
“É como se a mensagem fosse: ‘Olha, a gente se preocupa com a violência contra a mulher, mas se o criminoso for ídolo ou se puder agregar tecnicamente ao nosso time, a gente não se preocupa mais, não’. Eu jamais gostaria de ver uma criança idolatrando caras como esses —e futebol envolve idolatria”, diz.
Para Alana, é difícil que o Santos volte atrás na contratação, como aconteceu com o Corinthians em 2018 —e o tamanho do Robinho dentro do time é o principal motivo. “Tem um monte de torcedor passando pano e comemorando a chegada do cara ao time. É fácil dispensar quando o cara é um ‘zé ninguém’, mas quando o cara é grande, o buraco é mais embaixo”, afirma.
Segundo Alana, é aí que entram os movimentos feministas dentro do futebol. “Temos que passar a mensagem de repúdio, que mostrar que uma contratação dessas é inadmissível. Estamos aqui, unidas, para isso.”