Quinta-feira, 06 de fevereiro de 2025
Por Redação O Sul | 8 de julho de 2022
No dia 24 de junho, a Suprema Corte dos Estados Unidos revogou uma decisão desse mesmo tribunal, de 1973, que havia julgado inconstitucional a lei antiaborto do estado do Texas.
Esse julgamento histórico, que representou uma vitória para a luta do movimento feminista, estabeleceu um precedente que, na prática, impediu a criminalização do aborto em quase todo o país.
A revogação dessa decisão torna ainda mais necessário e urgente “O Acontecimento”, produção francesa que ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza no ano passado.
Na decisão de 1973, a Suprema Corte considerou que a lei antiaborto do Texas
violava a 14 emenda da Constituição, que, por sua vez, garante o direito ao respeito à vida privada. Estabeleceu, portanto, que a decisão pelo aborto é uma resolução de foro íntimo, legítima e não sujeita a julgamentos.
Ser urgente não faria de “O Acontecimento” um bom filme (baseado no livro
homônimo da francesa Annie Ernaux, lançado neste ano no Brasil). Por sorte, não é o caso. Se há uma capacidade transformadora do cinema, é a possibilidade de colocar o espectador no lugar do outro.
Essa operação é perseguida com afinco pela diretora Audrey Diwan, que cola a
câmera em sua protagonista, a estudante de literatura Anne (Anamaria Vartolomei). Enquanto estuda para os exames admissionais da universidade, ela descobre estar grávida. Um detalhe importante: a trama se passa nos anos 1960, quando o aborto ainda era crime na França.
O que Diwan faz, justamente, é mergulhar o espectador na intimidade da
protagonista. Estamos junto com Anne quando ela está com a família, com os
amigos, em sala de aula, mesmo quando está sozinha. A proporção de quadro
recusa o formato retangular, associado ao cinema-espetáculo, e opta por um
quadro mais fechado, próximo de um quadrado, reforçando a sensação de
proximidade.
A partir do momento em que Anne descobre que está grávida, no entanto, há uma inversão de forças. Aquilo que está fora de quadro, bem como aquilo que não é dito (ou melhor, que não pode ser dito) se tornam vetores da tensão cênica. O desespero de Anne cresce na medida em que o tempo passa e suas possibilidades se tornam aparentemente inalcançáveis. O quadro fechado se torna cada vez mais opressor. Cartelas contam as semanas que avançam.
Diwan trabalha simultaneamente um mergulho na intimidade da personagem e um olhar objetivo sobre a situação, recusando moralizações ou uma denúncia política – ainda que esse aspecto aflore naturalmente. Anne é uma personagem cheia e desejante, detalhe que também marca uma diferença entre “O Acontecimento” e alguns outros filmes sobre o assunto, que algumas vezes parecem ter vergonha do desejo e do sexo.