Quinta-feira, 26 de dezembro de 2024
Por Ali Klemt | 6 de novembro de 2022
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul. O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.
É incrível como a forma de educar os filhos mudou nas últimas décadas: da educação severa e fria ao excesso de cumplicidade. Talvez o mais relevante seja o fato de que, hoje, muitos pais e mães têm consciência sobre os efeitos dos seus atos e querem verdadeiramente acertar.
Até poucas décadas atrás, as crianças eram subjugadas a trabalhar em fábricas insalubres e até mesmo em minas, como se adultas fossem. Eram força de trabalho e as particularidades do seu estágio de desenvolvimento sequer eram consideradas. Os ricos, em contrapartida, eram criados por empregados domésticos, ficando bastante distantes do acolhimento materno. A principal função da mulher era parir e ser esposa — parir, por si só, já era um risco (até o advento da penicilina, muitos bebês eram perdidos ainda na primeira infância), mas botar filhos no mundo era necessário. Dá até pra compreender esse relativo afastamento como uma forma de proteção emocional.
O desenrolar do século XX, contudo, muda bruscamente as relações familiares. O desenvolvimento científico traz mais chances de vida. As mulheres passam a ocupar um papel ativo na sociedade e saem da função puramente reprodutiva. A pílula anticoncepcional dá à mulher o poder de fazer sexo por prazer e optar pelo melhor momento para gerar uma vida. O mercado de consumo se expande enormemente, fazendo com que se queira ter tudo-ao-mesmo-tempo-agora e a vida passa a ter muito mais do que o básico para subsistência. Existir passa a significar também “ter”. As famílias encolhem, mas o conhecimento acerca do desenvolvimento humano aumenta absurdamente.
Definitivamente, o mundo vira de cabeça para baixo. Ou, finalmente, de cabeça para cima. Estamos encontrando algumas respostas.
Contudo, a maternidade passa a ocupar um lugar jamais visto no imaginário coletivo. Jamais a maternidade foi tão enaltecida e, principalmente, vinculada à imagem de sacrifícios diários. “Ser mãe é padecer no paraíso” é uma frase constante e não basta a mulher fazer todo o possível para criar um filho, ela precisa mostrar ao mundo as suas abnegações constantes. Ser mãe se transforma em uma prova não só de capacidade reprodutiva, mas também de talento social: ter o filho mais desenvolvido passa a ser uma competição velada. E dê-lhe a botar as crianças a estudar línguas, raciocínio lógico, artes marciais e, quem sabe, até mesmo teatro para a desinibição. Os filhos passam a andar vestidos como miniadultos, reproduzindo as expectativas frustradas dos seus próprios pais e carregando esse enorme fardo nas costas, já na largada da corrida da vida. O espaço para ser criança vai se tornando cada vez menor, na medida em que atividades lhes vão sendo empurradas entre uma aula de tênis e um jogo de computador.
Em contrapartida, felizmente cresce a consciência da criação neurocompatível, em que se consideram as etapas do crescimento infantil, seus medos e suas limitações; em paralelo, as janelas de desenvolvimento para o estímulo de determinadas habilidades são aproveitadas. A criança passa a ser respeitada enquanto ser humano, mas sai, também, do pedestal em que indevidamente foi posta. Porque você pode, sem dúvida alguma, ser o tesouro da mamãe e do papai, mas definitivamente é preciso aprender cedo que você não é o centro do mundo. É isso ou quebrar a cara rapidinho.
Criar um ser humano é a missão mais nobre — e também a mais difícil — que se pode assumir em uma existência. São muitas variantes e grande parte delas não depende sequer de você: depende da personalidade do próprio serzinho sob seus cuidados. Não é uma tarefa fácil, mas é o tipo de jornada que vale uma vida inteira: repleta de percalços, buracos e desvios, mas com paradas para apreciar as mais belas vistas, sentir os mais incríveis sentimentos e, principalmente, com a certeza de que, na linha de chegada, você tem para quem passar o bastão da vida.
Ali Klemt
Apresentadora de TV
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul.
O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.