Segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

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TV Dramatização de episódios como o incêndio da Boate Kiss e reação de familiares levantam debate sobre a responsabilidade emocional e social na reconstituição de tragédias para as telas

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Série “Todo dia a mesma noite”: exploração do incêndio na Boate Kiss para uns, instrumento de pressão por Justiça para outros.

Foto: Divulgação/Netflix
Série “Todo dia a mesma noite”: exploração do incêndio na Boate Kiss para uns, instrumento de pressão por Justiça para outros. (Foto: Divulgação/Netflix)

No universo pulverizado do streaming, “Todo dia a mesma noite” foi a produção mais vista na Netflix no Brasil nos últimos dias e chegou à sexta posição mundo afora na semana de estreia. Em um país amaldiçoado pela impunidade, a série denuncia que ninguém está preso dez anos após o incêndio que tirou a vida de 242 pessoas na Boate Kiss, em Santa Maria. Também alerta espectadores para a necessidade de medidas de prevenção e segurança em escolas, shoppings, casas de festas e afins. E, com cenas impactantes, esquenta o debate ético em torno da crescente adaptação dramática de fatos para as telas. Não é pouco.

Três dias após o lançamento da série dirigida por Julia Rezende e produzida pela Morena Filmes, 40 famílias de vítimas e sobreviventes do incêndio anunciaram a contratação da advogada Juliane Korb para um eventual processo. As queixas são as de que a Netflix não os comunicou oficialmente da dramatização, do que veem como “exploração” da tragédia, e do trailer com a cena de corpos no ginásio da cidade.

“Alguns destes pais decidiram à época não fazer o reconhecimento, jamais viram imagens de seus filhos mortos. Em obra de ficção, não era preciso autorização, mas queremos tratar da responsabilidade emocional e social ao se reconstituir uma tragédia”, afirma Korb, irmã de um sobrevivente da Kiss.

Parentes de vítimas passaram mal ao ver o trailer. Outros, em tratamento psicológico, também conta a advogada, tiveram retrocesso sensível. As famílias desejam a retirada da cena com o reconhecimento dos corpos do trailer, e que parte do lucro seja destinada ao tratamento de saúde mental de familiares e sobreviventes e ao memorial às vítimas, com custo estimado em R$ 4 milhões.

Legalmente, de acordo com especialistas em direito autoral e adaptação de fatos para o audiovisual, como a advogada Paula Tupinambá, não há amparo claro para os pedidos. Os tribunais reconhecem o chamado direito ao esquecimento. Porém, em decisão do Superior Tribunal de Justiça, frisa a advogada, “ressalvam-se do direito ao esquecimento fatos genuinamente históricos, com o interesse público e social sobrevivendo à passagem do tempo”.

Lei e sociedade

Como, além de se tratar de ficção, não há acusação de erro documental ou aviltamento de reputações, a estratégia do Grupo dos 40, de forma pioneira, é a de questionar a ética e a responsabilidade social da marca.

“A discussão é muito interessante e importante. As leis acompanham a sociedade, e não significa que o que é considerado legal hoje não possa ser considerado ilegal depois”, diz Tupinambá.

A advogada lembra ainda que, com o sucesso da série, o debate é acompanhado com atenção pelo mercado. Há expectativa para a adaptação de “O espetáculo mais triste da Terra”, livro de Mauro Ventura sobre o incêndio do Gran Circo Norte-Americano, em Niterói, quando pelo menos 503 pessoas morreram.

Nos Estados Unidos, uma das produções que geraram críticas de famílias de vítimas foi “Dahmer: um canibal americano”, adaptação dramática da história do serial killer lançada ano passado, com enorme sucesso, também pela Netflix. Os principais argumentos foram os de que a série aumentara o trauma dos envolvidos e as famílias não tiveram ganho financeiro com o produto. Em nota, a Netflix respondeu à época que o drama de Ryan Murphy centrou na denúncia da impunidade na Justiça americana.

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