Quarta-feira, 27 de novembro de 2024
Por Redação O Sul | 25 de maio de 2023
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul. O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.
Em recente declaração, o ex-governador de São Paulo, João Dória, disse ter entrado na vida pública como um liberal e saído como um liberal social. O acréscimo do substantivo masculino coletivo ao auto-proclamado perfil liberal surpreendeu menos pela forma e mais pela tardia autocrítica. É bastante revelador que um legítimo representante de nossa elite precise de uma vida para chegar à conclusão de que é necessário que haja políticas públicas de caráter social num País com os níveis de pobreza, injustiça social e desigualdade existentes no Brasil. Não menos preocupante que a franqueza extemporânea de Dória tem sido a incapacidade de formarmos um consenso elementar sobre as mudanças necessárias para que o País ocupe uma melhor condição econômica e social do que aquela que hoje ostenta. Contudo, essa tomada de consciência não existirá com o atual modelo mental de nossas elites, cujo papel se revela absolutamente essencial para qualquer reforma que se pretenda efetiva no que diz respeito às necessárias transformações no atual modelo governança que vigora no País.
Vivendo sob o presidencialismo de coalizão, tão bem retratado pelo artigo seminal de Sérgio Abranches, escrito em 1988, assistimos em nosso País às trocas de favores, também conhecidas popularmente como o “toma lá, dá cá”, adubarem as raízes da inoperância reformista que experimentamos, cujo estado patrimonialista, perdulário e ineficaz é seu trágico desfecho. O que esperar diante da inação de lideranças manietadas a um modelo perpetuador da iniquidade e de uma elite que se regala indiferente ao caos que vivemos, no qual cercas cada vez mais altas não conseguem silenciar a voz dos excluídos, em crescente número? Com o triunfo do capitalismo liberal burguês, o húmus do qual emergiram as revoluções de 1789 e 1848, que levaram o mundo a ingressar na modernidade, mudou completamente. Também o apelo marxista, que fomentou a Revolução Russa de 1917, perdeu o vigor e já não assanha tantos ânimos como outrora. O tempo das grandes revoluções passou, e as mudanças sugerem agora terem que ser tecidas organicamente, não mais através de grandes rupturas, mas de laborioso esforço incremental, a partir da tomada de consciência da necessidade de mudança, e isso ainda parece infelizmente estar longe de nossa realidade.
O caminho, entretanto, para a construção de um consenso unificador pela mudança reformista não pode carecer de um pleno entendimento de quem somos e do que é preciso mudar. Parece que reconhecer termos herdado uma quase indistinta confusão entre as esferas pública e privada tem sido demasiado penoso para estabelecer fronteiras que permitam a ambas progredir. O patrimonialismo, contudo, apesar de justificar em parte o atraso brasileiro, não deve servir para alimentar nosso “complexo de vira-lata”, nosso autoapequenamento, mutilador das transformações que impunemente postergamos “ad-infinitum”. Existem, ademais, os conflitos e as contradições de uma sociedade brutalmente desigual, amplamente ancorada na exploração e na humilhação moral da maior parte da população brasileira.
Enfrentar tais desafios, todavia, exigirá muito mais que a centelha retórica de um membro do establishment econômico, como fez João Dória. Teremos que ter despreendimento e coragem para colocar o “dedo na ferida”, revisitar nossos fantasmas, reconhecer que não é mais possível ignorar aqueles que provocativamente Jessé de Souza chamou de “ralé brasileira”, essa classe invisibilizada, antes descortinada pelos olhos atentos de Florestan Fernandes, frutos de um processo tardio e torto de uma escravidão que nunca acaba, pois liberdade sem apoio equivale mais a uma condenação eterna, cuja conta milhões ainda pagam injustamente. É esse encontro com a nossa nua e crua realidade que precisamos enfrentar para que haja alguma esperança de transformação social, que vá além da crença que um mercado competitivo e liberal, por si só, possa oferecer. E isso, claramente, terá que ter o apoio de nossa elite, até como forma de purgar séculos de indiferença.
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul.
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