Quinta-feira, 24 de abril de 2025
Por Edson Bündchen | 1 de junho de 2023
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul. O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.
Somos seres bastante suscetíveis a elogios. Há quem tenha que defender-se deles, tamanha a profusão dos aplausos. No panteão de heróis fictícios ou reais, de celebridades ou pessoas que se destacam em suas mais diversas atividades, figuram alguns atletas de altíssimo nível, sendo o futebol talvez a arena de maior visibilidade no mundo. Entretanto, conforme bem assinalou o sociólogo Pierre Bourdieu, “os circuitos de consagração social serão tão mais eficazes quanto maior a distância social do objeto consagrado”. É prudente, então, para quem navega no doce aroma da fama, reconhecer que quanto mais distante é a pessoa que promove o elogio a nós, quanto menor o interesse ou o comprometimento dela em nossa vida, mais autêntico e genuíno se torna o louvor. Essa é a lógica da consagração social, mas essa também pode ser a lógica da difamação social, especialmente por aqueles que buscam a camuflagem social para desferir sua ira e destilar seus preconceitos. Assim, em paralelo aos circuitos de consagração social, existem, quase que em idêntica medida, os circuitos de difamação social, como lamentavelmente tem experimentado o atleta brasileiro Vinícius Jr, alvo de racismo na Espanha, País onde atualmente exerce a sua profissão.
Os estádios de futebol são palcos nos quais a emoção predomina, muitas vezes à flor da pele. Na guerra verbal típica dos campos esportivos, a normalização dos palavrões foi o meio encontrado para que o extravasamento das paixões pudesse criar seu próprio espaço. Naquele ethos, vigora um outro pacto de civilidade, mais permissivo, mais abrangente e menos politicamente correto. Em outros esportes de massa também há xingamentos e palavrões, mas nada que se assemelhe aos usos e costumes do velho esporte bretão. E não precisa ser num local como o Maracanã ou um Santiago Bernabeu, jogos na periferia ou nos grotões também possuem sua própria e singular cultura. Todavia, até mesmo os estádios de futebol, que tão bem acolheram e souberam se moldar aos caprichos retóricos agressivos que compõem a polifonia futebolística, encontram limites, nem sempre sem dor, para seus exageros.
Nesse contexto, a expressão do racismo, apelando para a cor da pele dos atletas como exercício do direito de xingar, dentro da tênue linha daquilo que fora tacitamente convencionado como retórica assimilada e aceita, excede agressivamente até mesmo a ampla faixa de impropérios permitidos num jogo de futebol. E isso, obviamente, não está acontecendo por acaso. Fosse há 20 anos, talvez os apelos de Vinícius Jr. encontrassem bem menos ressonância. Mas, agora, foram necessárias apenas algumas horas para que a mídia mundial tratasse do tema com a devida importância, a partir da coragem desse jovem craque brasileiro. Graças a um conjunto de valores referenciais humanistas que tem ganhado mais corpo e força, impulsionados pelo poder que as mídias eletrônicas passaram a ter, o racismo pode agora ser confrontado quase que instantaneamente também. É o lado positivo das mídias sociais, tantas vezes albergue para a disseminação da mentira, da intolerância e do preconceito.
Tudo sugere que o episódio Vinícius Jr. tenha um caráter demarcatório e fundamental na eterna luta contra o racismo, pela força e alcance do seu simbolismo. Contudo, também não há como deixar de tristemente reconhecer que ecos do Franquismo, ditadura que assolou a Espanha e teve uma sobrevida demasiado extensa no pós-Segunda Grande Guerra, está na raiz dos renitentes casos de racismo nos estádios hispânicos. A partir desse episódio, ficou mais difícil varrer a sujeira para baixo do tapete. O assunto terá que ser enfrentado, e não há espaço para fingir que nada esteja acontecendo. É nesse contexto que o combate à intolerância e ao preconceito torna-se tão urgente e necessário. Se há motivos para duvidar de um elogio de quem está muito próximo, redobrada cautela deve ser tomada quando o agressor não tem o trabalho de esconder sequer a própria mão.
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul.
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