Segunda-feira, 23 de dezembro de 2024
Por Redação O Sul | 20 de janeiro de 2024
Foram pessoas que executaram milhões de seres humanos na Alemanha nazista. Algumas testemunharam o Holocausto e decidiram apagá-lo da memória ou fingir que nada tinha acontecido. Para o massacre perpetrado nos campos de extermínio foram necessários a industrialização nazista da morte, uma infraestrutura e uma burocracia humana, a gestão da banalização do mal e seres humanos que voltaram para suas casas, que tinham família e amigos. Como eram esses seres humanos? Como eles puderam cometer tais crimes?
O audiovisual tende a focar nas vítimas ou em sua interação com os algozes e só recentemente se aprofundou na vida cotidiana dos assassinos. Esta semana, chegou aos cinemas o filme “Zona de interesse”, de Jonathan Glazer, que mostra o horror de Auschwitz através da família de seu comandante, cuja mansão ficava ao lado do campo de concentração. Eles nada viam, nada ouviam, não sentiam cheiro nenhum.
Glazer, que ganhou o Prêmio do Júri em Cannes com o filme, adaptou livremente o romance homônimo de Martin Amis. E o Disney+ exibe a minissérie “A tradutora do silêncio”, baseada no romance “A casa alemã”, de Annette Hess, sobre o julgamento, entre dezembro de 1963 e agosto de 1965, em Frankfurt, de vinte comandantes desse mesmo campo de extermínio. É um bom momento para perguntar: esses retratos são legítimos? Ou são imorais? Como um diretor aborda esses personagens?
Documentários como “Shoah” e “O último dos injustos”, de Claude Lanzmann, contaram a história do extermínio nazista. Filmes como “O homem do prego”, “Um Sinal de Esperança”, “A vida é bela”, “A 25ª hora”, “Cinzas da guerra”, “Bent” e “O filho de Saul” e “A escolha de Sofia” mostraram as experiências das vítimas. As relações truculentas entre os nazistas e as pessoas confinadas em campos de concentração apareceram em “Kapò”, “A lista de Schindler”, “O menino do pijama listrado” e até em “O porteiro da noite”.
A busca e a localização de nazistas escondidos após o fim da guerra foram mostradas em “O dossiê de Odessa”, “O aprendiz”, “O substituto”, “Os meninos do Brasil”, “Anjo da morte” e “O médico alemão” (nestes três últimos, no centro da trama está Josef Mengele, que já foi retratado na tela em inúmeras ocasiões). E há também as recriações da Conferência de Wannsee, onde foi planejado o extermínio judaico, em “A solução final” e “A conferência”. A vida cotidiana nazista, que raramente foi retratada na tela, surge em filmes como “A queda” e, em detalhes, em “Zona de interesse”.
Jonathan Glazer, o diretor, é um gênio do videoclipe com uma filmografia pequena — apenas quatro longas. Ele disse que já se dedicava ao tema há tempos: “Sou judeu e cresci em uma família praticante”. Em conversa com o El País em setembro, durante o Festival de San Sebástian, o cineasta afirmou ter se impressionado a ver imagens do vandalismo da Noite dos Cristais na infância: “Pessoas parecidas com o meu pai, meus tios, comigo mesmo, aparecem recolhendo os cacos das vitrines estilhaçadas. Eu era criança e não entendia o que era aquilo, mas me dava uma sensação perturbadora. Por que as pessoas andando na rua não fazia nada, não ajudavam? Por que tanta passividade?”.
Glazer então procurou “um ângulo para encarar esses acontecimentos históricos, uma abordagem ainda não vista na tela”. Em 2014, topou com uma resenha do romance de Martin Amis e pediu para comprar os direitos antes mesmo de ler o livro. “Ele teve a coragem contar essa história”, disse. “Embora o personagem do comandante criado por Amis seja fictício, investiguei pessoas reais e isso me levou a uma longa jornada.” É por isso que no filme os protagonistas mantêm os seus nomes verdadeiros: o comandante de Auschwitz Rudolf Höss e a sua esposa, Hedwig.
Essa complexa indagação também moveu outros artistas, como o dramaturgo espanhol Juan Mayorga, vencedor do Prémio Princesa das Astúrias de Literatura, que refletiu sobre o nazismo em peças como “O cartógrafo” e, sobretudo, “Himmelweg”. “Quando um criador se depara com personagens como esses, uma questão que deve ser colocada é como compreendê-los, mas até certo ponto, sem justificá-los ou legitimá-los. Cuidado! Não se trata apenas de uma questão estética, mas também política e moral, de respeito à memória das vítimas”, explica Mayorga.