Quarta-feira, 25 de dezembro de 2024
Por Redação O Sul | 10 de fevereiro de 2024
Um tempo em que passear pela rua era correr o risco de ser encharcado com um balde de água. Ou ser empurrado para se sujar na lama. Ser atingido por objetos atirados pelas janelas. Ou até encontrar grupos cantando e dançando à sua maneira. Em suma, ser alvo de brincadeiras ou ver pessoas se divertindo do jeito que queriam.
Esse tempo era o entrudo, um nome dado aos dias que antecediam a Quaresma e que acolhiam as diferentes formas de brincar e extravasar antes dos dias de restrições e penitências. O entrudo foi o precursor do carnaval no Brasil e refletia os festejos trazidos pelos colonizadores portugueses.
Com as tentativas de modernizar e civilizar o país depois da Independência, o entrudo foi classificado como uma festa grosseira, selvagem e até prejudicial para a imagem do Brasil. Passou a enfrentar críticas e proibições.
No Ceará, a festa foi vetada pela Secretaria de Justiça em 1893. A proibição foi reiterada pelo intendente de Fortaleza, Guilherme Rocha, no ano de 1905. No Rio de Janeiro, nem as proibições que se repetiram por décadas conseguiram sufocar as expressões populares do período.
Uma solução das elites para tentar romper com o passado colonial da festa descrita como “porca e bruta” foi importar uma celebração aos moldes venezianos e parisienses, com os bailes de máscaras, fantasias luxuosas e personagens como Pierrot, Arlequim e Colombina. Da vontade de se diferenciar da festa “incivilizada”, nascia o Carnaval dos clubes e da “boa sociedade”.
Surgimento do entrudo
Quando chegaram para colonizar o Brasil, os portugueses trouxeram muitos aspectos além do idioma. Vieram também os costumes, as comidas, os festejos. Isso inclui o entrudo, que existia na Europa em formatos diversos em cada localidade.
Conforme o professor do programa de pós-graduação em História da Arte da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Felipe Ferreira, a festividade tem origem ainda no século 11 e foi se formando lentamente, ainda sem ter um nome. Eram apenas os dias de praticar excessos, comemorar e beber antes da Quaresma — período estipulado pela Igreja Católica com restrições e preparação espiritual para a Páscoa.
A ideia era fazer o que podia até a Quarta-Feira de Cinzas. Depois dela, começaria uma série de restrições: não comer alimentos gordurosos, cantar, dançar ou festejar, como explica o professor.
Os nomes para esse período foram tão variados como as celebrações. Segundo o pesquisador, as pessoas começaram a se referir aos dias de festa como “os dias do adeus à carne”, o que acabou originando as denominações do “carnevale” no italiano e do Carnaval no português.
Entrudo no Brasil
Na historiografia, as primeiras referências a um período de Quaresma no Brasil são entre 1520 e 1530, aponta Felipe Ferreira. Assim, é possível supor que o entrudo já estava presente também desde o início da ocupação portuguesa.
O pesquisador elenca alguns exemplos das brincadeiras e atividades que aconteciam nas ruas durante o entrudo. Como as danças e as músicas, os atos circenses, pessoas exibindo habilidades para domar animais.
Outras iam mais para o lado das pegadinhas com transeuntes ou conhecidos: chamar alguém para jantar e servir sopa apimentada, sujar as maçanetas das portas com gordura fedorenta e até pregar uma moeda no chão para enganar quem quisesse apanhá-la nas ruas.
“Durante uns 300 anos, até 1800 e um pouquinho, é isso que está acontecendo no Brasil inteiro: diversos tipos de festa. Não tem um formato essa festa. É brincar, se divertir, pregar peças, dançar. Então tudo isso é um pouco do que a gente sabe que tem nesse período, mas não tá muito bem descrito [em pesquisas sobre o tema]”, resume o historiador.
As características mais conhecidas do entrudo no Brasil vêm de relatos do que acontecia nas ruas do Rio de Janeiro no século 19. Como capital brasileira, a cidade atraía a atenção de outras cidades brasileiras e recebia muitos visitantes estrangeiros.
O pesquisador Felipe Ferreira aponta que a cidade carioca tinha particularidades nesse brincar. Uma delas era a predominância de pessoas negras nas ruas, fossem escravos ou negros libertos. No período, as classes mais abastadas pouco deixavam as casas, pois evitavam as condições precárias das ruas.
“Existia um tráfego de escravos em torno dos chafarizes carregando baldes para cima e para baixo para abastecer as casas. Então a brincadeira mais clássica era jogar água em quem tivesse perto. Era aquela coisa: se você tá passando nas ruas do Rio, seja negro ou o que for, você tá arriscando levar um balde d’água na cabeça. É claro que não é essa liberdade toda: se um escravizado jogar um balde d’água na cabeça de um senhor, ele vai preso”, explica Felipe.
Além de molhar os outros usando baldes, seringas ou bisnagas, os brincantes também passavam graxa no rosto dos brancos e talco no rosto dos negros.