Sexta-feira, 22 de novembro de 2024
Por Redação O Sul | 21 de março de 2024
Quando Vincent van Gogh (1853-1890) tomou a decisão de se tornar pintor em 1880, no distrito carvoeiro de Boringe, norte da Bélgica, tinha 27 anos e uma rica vivência humana e profissional, pois havia trabalhado desde a adolescência como marchand, pregador e livreiro. Nos dez anos seguintes, produziu sua obra. Tinha consciência da urgência e se devotou totalmente à arte.
Apesar de sofrer de crises nervosas, evitou se render à doença mental e manteve consciência de arte e linguagem. Mais de 600 peças, entre esboços e quadros, hoje reconhecidos e valorizados nas principais casas de leilão, resultaram de planejamento, reflexão e uma compreensão profunda do mercado. Algo bem diferente do perfil póstumo que o tachou de artista lunático e intuitivo.
Essas peculiaridades se apresentam na vasta correspondência que Vincent van Gogh manteve com o irmão mais velho, Theo (1857-1891). Muitas coletâneas das cartas foram publicadas, mas só agora vem à luz “Cartas a Theo”, um volume de mais de 500 páginas que presta dois serviços. Primeiro, detalha a correspondência de Vincent tanto com Theo quanto com familiares, galeristas e pintores.
Segundo, aprofunda o conteúdo das cartas com notas de rodapé que explicam decisões e dúvidas do artista. Por fim, o livro colabora com a definição da personalidade e da obra de Van Gogh e a reação direta dos irmãos com o negócio das artes no período pós-impressionista.
Até o fim, Theo atuou como intermediário na comercialização das obras do irmão. Ambos eram quase gêmeos na aparência. Um queria ser pintor, mas se conformou em comercializar obras de arte. Outro, marchand demitido, pintou uma obra imortal com um olho clínico para o mercado das artes.
A edição de “Cartas a Theo” deriva de uma pesquisa acadêmica. Ficou a cargo do pesquisador Felipe Martinez e do crítico, ensaísta e professor Jorge Coli, que orientou sua tese de doutorado na Unicamp, “Os irmãos Van Gogh e o mercado de arte do século XIX” (2020). “Vincent foi marchand e entendia muito bem como o mercado de arte do seu tempo funcionava”, diz Martinez. “Depois de sua morte, sua biografia foi fundamental para o mito do artista solitário, que apesar de nada ganhar com suas obras segue seu caminho convencido de sua missão.”
Outro dado foi mostrar o papel de Johanna Borgen, viúva de Theo, para a divulgação e consagração da obra de Van Gogh junto à posteridade. Os irmãos morreram cedo, em menos de um ano. Legaram a ela o ônus de organizar a documentação e o acervo artístico.
Van Gogh começou a trabalhar aos 16 anos ao lado do irmão no posto de marchand da filial de Haia da galeria Goupil & Cie., com matriz em Bruxelas. Um tio era sócio da empresa e facilitou o emprego dos irmãos. Van Gogh atuou como representante na filial da galeria em Londres e iniciou o trabalho na agência parisiense até ser demitido, em 1876. Tentou as carreiras de professor e livreiro, enquanto ingressava na universidade de teologia, para se tornar pastor.
Depois, se mudou para Boringe, onde pregou aos mineiros. Mais tarde, sua licença foi cassada e só lhe restou se dedicar à pintura. Enquanto Theo assumia a gerência da Goupil na filial, em Paris, Van Gogh voltou à Holanda, onde permaneceu por cinco anos. Começou a produzir esboços e aprender técnicas como desenhar com modelo, perspectiva, sombreamento e pintura. Tentou a vida em Paris, mas, em 1888, visitou Arles, encantou-se pela luz e ali se estabeleceu, pintando durante um ano.
Vincent van Gogh e Theo morreram afetados por distúrbios nervosos e pela desilusão em relação ao valor das obras, situação que lhes parecia difícil de reverter. Van Gogh, com bloqueio criativo, se internou em um asilo e se mudou para Auvers-sur-Oise, vilarejo vizinho a Paris, onde se tratou com o doutor Gachet. Este o incentivou a voltar a pintar, até porque era colecionador e comprou trabalhos de Van Gogh a preços módicos.
O artista experimentou uma fase de autocrítica e alta produtividade, mas terminou suicidando-se com um tiro no peito (há teses questionando a causa da morte). Decepcionado com a carreira, Theo terminou seus dias em um hospício. Os médicos registraram a causa da morte como “dementia paralytica”. Os fatos trágicos alimentaram o estigma de amaldiçoado de Van Gogh.
“É preciso sempre lembrar que Vincent van Gogh foi, sim, um artista maldito, ou seja, ele se insere nesse campo de comportamento marginal aberto no século XIX, em que alguns criadores se situam”, afirma Jorge Coli. “Esse campo exclui concessões para com as correntes mercadológicas mais fortes do tempo e pressupõe uma crença poderosa no próprio gesto criador. Pressupõe ainda uma fé na própria arte acima de todo o resto: basta lembrar Paul Gauguin abandonando uma vida muito confortável de corretor da bolsa para tornar-se pintor.”
Isso não significa, diz Coli, que os artistas “malditos” não considerassem o sucesso de mercado como objetivo. “Tentavam expor no Salon oficial, buscavam galerias e marchands que os promovessem. Demoravam para se impor, mas atingiam o sucesso, mesmo que fosse com a carreira bem avançada — vide Cézanne. Van Gogh morreu antes disso.”
A análise negativa do mundo das artes evidenciada na correspondência era de um futuro miserável para os artistas inovadores. Os irmãos se assombrariam caso vissem o que aconteceu com o mercado da arte do século XXI. Neste cenário cada vez mais lucrativo, as obras de Van Gogh alcançam valores extraordinários de centenas de milhões de dólares. As informações são do jornal Valor Econômico.