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Carlos Alberto Chiarelli Da água, do fogo, da natureza

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Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul. O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.

Da água, pouca ou muita, tenho lembranças melhores ou piores. Ainda criança, de 4 a 5 anos, morava em Uruguaiana, quando uma farmácia, que fazia vizinhança pelos fundos com a nossa casa, de repente, deixou-me perplexo porque dela, mesmo sendo baixinha, via alta labaredas bailarem no céu agressivo. Tal visão ocorria no pátio dos fundos da nossa casa. O vento preocupava porque, estando sozinho, lembrei-me que meu pai, preocupado, dizia à minha mãe, ante qualquer ameaça de fogo: “Se continuar esse vento, ficaremos totalmente expostos”. Na verdade, não continuou tão crepitante o fogo.

Meu pai, do lado de fora, fizera dois telefonemas: um ao prefeito (adversário partidário, mas amigo leal) e outro ao general comandante das tropas locais. Em bem menos de meia hora de intervalo, as portas de casa abriram-se de par em par e por ali os soldados e voluntários juntaram-se numa fila mista, despejando, balde por balde (carregados nos grandes caminhões, que traziam tonéis de água), a água do sempre útil rio Uruguai. Na cidade, bombeiro não havia.

Minha casa, nessa hora fora invadida. Agora, ficava emocionado e agradecido pela fila humana que trazia água de caminhões, em fila, e de mão e mão, pelos soldados. De lá, subiam ao teto de nosso escritório e lançavam a água no foco do incêndio, situado nos fundos da casa vizinha. Essa batalha em que homens e água solidários e insistentes fizeram o fogo, que conseguira de maneira intermitente acercar-se mais e mais, baixar perigosamente, ameaçando a estrutura da casa. Como foram colocadas mais quatro escadas, que permitiram acesso ao teto, a operação, mesmo com resultados positivos, ainda foi muito lenta e chegou a danificar a parede do escritório, que separava da casa vizinha incendiária.

Hoje, uma vida depois, o incêndio me deixou marcado. Minha memória transita pelo interior da casa. Ficara de lado, segundo os fatos. Nem omisso, nem totalmente participativo. De qualquer maneira, passara a ter uma experiência que meus amigos de idade similar nunca tinham vivido. Fiquei marcado por um temor que durou quase um ano, pensando no fato de estarmos praticamente dependendo da “vontade” das chamas contundentes.

Agora, oitenta (vejam só!) anos depois, fico desgastado com algumas “labaredas”.

Praticamente, na Fronteira Oeste tinham ocorrido três ataques raivosos do fogo, até que de lá me mudei (17 anos). Passei a crer na fragilidade do direito à propriedade ao ver a grande destruição que fazia desaparecer aquilo que, às vezes por tanto tempo, trabalharam para conseguir operários e empresários.

Vi, no meio da imagem ondulada, o transpor das ondas de labaredas com agressividade incontida, ferindo e matando, sem um mínimo de arrependimento, crianças, velhos e velhas. Nenhum juízo fazíamos do que fizemos? O que fazer? Desacreditar na Natureza, que pode ser cura de tantas enfermidades?

É possível crer na mãe que, furiosa, destrói e mata? Depende do mal que tenhamos feito a ela, na ânsia de explorá-la para ganharmos, muitas vezes ilicitamente, o dinheiro que ela, descuidada ou desprotegida, fornece a quem se propõe a usá-la mercantilmente.

Agora, pela quarta vez (basta lembrar setembro e novembro de 2023 e abril de 2024), num ímpeto que a faz incontrolável, lança-se até alargar suas bordas; faz do riacho, arroio e deste, o rio modesto, mas perene. Com essa persistência, águas traiçoeiras compunham uma relação anômala de mancebia com ventos incontroláveis e aterrorizantes, que se dissiparam pelo ar, sibilinos, semeando o temor por quem, nós, humanos, só conseguiremos ser aterrorizados por aparelhos e máquinas de botões e luzes que nos avisam o que já passou ou anunciam o que não vai ocorrer.

Carlos Alberto Chiarelli foi ministro da Educação e ministro da Integração Internacional

Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul.
O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.

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https://www.osul.com.br/da-agua-do-fogo-da-natureza/ Da água, do fogo, da natureza 2024-05-07
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