Sexta-feira, 27 de dezembro de 2024
Por Redação O Sul | 11 de maio de 2024
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul. O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.
Poucas vezes na história do Rio Grande do Sul a palavra “calamidade” fez tanto sentido. Com a tragédia climática que afeta o estado neste início de maio, provocando enchentes e destruição, nós gaúchos estamos vivendo um desafio coletivo sem precedentes.
Nestes momentos extremos, nos deparamos com os nossos maiores anseios e fragilidades, o que aflora a natureza humana — aquela que escondemos de todos, inclusive de nós mesmos. Quando o instinto de sobrevivência se torna protagonista e o medo assombra cada pensamento, é revelado um lado perverso que preferíamos ignorar como sociedade, o nosso lado natural. Com a adversidade batendo à porta, a cortina social se erguesse e revelasse a feiura que espreita por trás dos sorrisos bondosos e das cortesias cotidianas superficiais.
Nesses momentos de desespero coletivo, como uma enchente devastadora que deixa comunidades inteiras desabrigadas e desamparadas, a ganância e a mesquinhez emergem como figuras sombrias. Deste modo, os alimentos nos mercados se tornam cada vez mais escassos a cada minuto, as bombas de gasolina se esgotam, enquanto as redes sociais transbordam de vídeos das enchentes em busca de “likes” e de alimentar discursos políticos inflamados.
Ao mesmo tempo que alguns estão lutando para sobreviver, há quem veja a calamidade como uma oportunidade individualista, seja para o lucro rápido, seja para o prestígio e popularidade. Muitas pessoas se aglomeram animalescamente nos mercados, esvaziando prateleiras, acumulando recursos essenciais; não porque precisam, mas por pura avareza.
Estes estocam comida e água, não para compartilhar com os necessitados, mas para garantir seu próprio conforto ou lucro. Em muitos casos, isso é feito pelos próprios comerciantes e empresários que veem no desespero de uma cidade inteira uma conveniência para lucrar mais, inflacionando os preços: “enquanto uns choram, outros vendem lenços”, pensam eles ao se julgarem espertos.
Em eventos extremos, muitas pessoas revelam a sua face mais sombria, mostrando as suas indiferenças pelos sofrimentos alheios, se importando apenas com o desejo frenético por autossatisfação. Assim o egoísmo eclipsa qualquer noção de solidariedade. É como se a empatia, a compaixão e a generosidade fossem relegadas a um canto úmido e esquecido, enquanto a ganância e a sede por poder dominam o palco e os holofotes da humanidade.
No entanto, mesmo quando o pior lado do ser humano parece estar em ascensão, como neste momento obscuro vivido no Rio Grande do Sul, ainda há uma forte luz que brilha no horizonte. Em meio ao caos e à escuridão individualista, há pessoas que desafiam as tendências egoístas e mostram compaixão desinteressada, cooperando com os mais necessitados. São aqueles que abrem suas casas para os desabrigados, compartilham suas escassas provisões com os famintos, e estendem suas mãos para aqueles que precisam de ajuda.
Esses notáveis anônimos nos lembram que, mesmo nas ocasiões mais tempestuosas, a humanidade ainda é capaz de grandes gestos altruístas. Eles nos lembram que, apesar do pior lado do ser humano sempre estar presente dentro de nós, há ao mesmo tempo a generosidade e a empatia, gerando a esperança de que o melhor lado da nossa natureza prevaleça. Nos períodos de adversidade, a força desses atos benevolentes é a bússola que nos guia através da superação, lembrando-nos de que, juntos, somos mais fortes e mais resilientes do que jamais poderíamos ser sozinhos.
João Centurion Cabral – Professor de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande e coordenador do Laboratório de Neurociência Social
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul.
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