Sexta-feira, 27 de dezembro de 2024
Por Edson Bündchen | 30 de maio de 2024
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul. O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.
A história dos muros, erguidos mundo afora ao longo dos séculos, guarda muitas memórias, a maioria delas pouco edificantes, várias até abomináveis, como o Muro de Berlim e todas as barreiras à integração entre as pessoas, ideias e costumes que marcaram a construção da moderna sociedade. São muros que segregam, muros que aprisionam, muros que mutilam a esperança. Diferente de um lar, que serve para acolher e dar abrigo, o muro, não obstante ter também protegido espaços e territórios em épocas longínquas, tristemente hoje ainda serve para consagrar a aversão ao que vem de fora, ao que pode representar uma ameaça. É esse medo que assola a Europa e os EUA, atuais campeões mundiais da xenofobia, com muros reais e imaginários, todos a hostilizar o estranho, o estrangeiro, o diferente.
Mas, não apenas dessa natureza política se nutre a essência dos muros. No já distante ano de 1941, o Rio Grande do Sul e sua capital foram atingidos pela mais severa enchente até então registrada. Porto Alegre contava com menos de 300.000 habitantes, dos quais cerca de 70.000 ficaram desabrigados. Era um Brasil e um estado gaúcho muito diferentes de hoje, porém a gênese comum a todas as tragédias ali também estava presente, com ampla mobilização das forças públicas e civis, formando enorme teia solidária jamais vista.
Naquele tempo do Brasil de Vargas, éramos um País ainda predominantemente rural, falava-se menos em mudanças climáticas, tampouco havia bom nível de assertividade em relação à previsão do tempo e suas intempéries. Mesmo assim, após a catástrofe gaúcha de 1941, muitas medidas estruturantes foram adotadas, talvez a mais emblemática delas sendo o Muro da Mauá, finalmente concluído em 1974 e que passou a simbolizar o engenho humano a lutar contra as indomáveis forças naturais. O muro, apesar de não ser uma unanimidade ao longo do tempo, se revelou eficaz em vários momentos, numa vitória da utilidade sobre a estética, combinação por vezes impossível de se conciliar. Contudo, 83 depois, uma improvável, mas sempre possível combinação de fatores climáticos, despejou extraordinária quantidade de chuvas nas nascentes dos principais afluentes do Lago Guaíba, provocando, ao longo de seu curso, uma destruição sem precedentes, ceifando a vida de centenas de pessoas e uma destruição material inaudita.
O complexo de proteção à capital gaúcha, composto por quase 70 quilômetros de diques, muros de contenção, comportas e estações de bombeamento, entretanto, não impediu que a tragédia da enchente de 2024 atingisse em cheio a Grande Porto Alegre. Segundo especialistas, muito embora todo esse aparato protetor, negligência e descuidos com a manutenção permitiram que o sistema, que começou a operar a partir dos anos 1960, entrasse em colapso, inundando grande parte da cidade. Quais lições podemos tirar de tudo isso? A par das críticas justas e necessárias, assistimos a uma espécie de “caça às bruxas”, como se fosse possível, diante de um histórico tão extenso de falta de diligência, apontar para um único culpado ou meia dúzia de responsáveis.
De fato, estamos diante de algo muito mais abrangente e estrutural. Trata-se de uma nova consciência em relação às mudanças climáticas e ao cálculo político que tem sido feito quando o assunto é a prevenção ou a mitigação de riscos advindos de catástrofes naturais. Não será mais possível, como de forma geral foi feito até agora, empurrar o problema para as gerações futuras, ou através da omissão ou de indisposição para o enfrentamento dos problemas. Sob a pressão de uma população cada vez mais ciente dos riscos aos quais está submetida, os homens públicos e as lideranças privadas terão que responder com muito maior tempestividade e assertividade às crescentes demandas por maior atenção aos problemas do clima. Sem isso, e com a maior recursividade das tragédias climáticas, todos perderão, especialmente os mais pobres, vítimas primeiras da incúria e do descaso humano e para as quais nossos melhores esforços devem estar direcionados.
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul.
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