Sexta-feira, 22 de novembro de 2024
Por Redação O Sul | 30 de maio de 2024
“Tenho uma ideia de título para esta entrevista: ‘Cidades-esponja, a arte da sobrevivência’”, sugere o arquiteto paisagista chinês Kongjian Yu, ao resumir em poucas palavras sua conversa com o jornal O Globo. A sugestão faz referência à necessidade existencial de adaptar as cidades às mudanças climáticas e prepará-las para enchentes como as que ocorreram no Rio Grande do Sul.
Yu, de 61 anos, é um homem de ideias. A mais famosa delas é a de criar nas cidades espaços de amortecimento, absorção e reaproveitamento das águas da chuva, para minimizar danos causados pelas enchentes.
Conhecido como “cidades-esponja”, o conceito foi incluído em 2013 no plano nacional da China e hoje há centenas de projetos inspirados nele no país. As inundações gaúchas despertaram interesse em reproduzir a ideia no Brasil, algo que Yu propôs às autoridades brasileiras que participaram de um seminário sobre mudanças climáticas organizado há duas semanas pelo Vaticano.
O sistema concebido por Yu tem um princípio que contraria o que costuma ser o senso comum na gestão das chuvas, que é conter as águas: ele é a favor de dar espaço a elas. Em vez do sistema tradicional centrado no concreto, com canais, represas e sistemas de drenagem, que Yu chama de “infraestrutura cinza”, o arquiteto diz que é mais eficaz e barato desacelerar a velocidade das águas com o aumento de superfícies que as absorvam, preferencialmente vegetação, mas também concreto poroso.
Extremo e imprevisível
A ideia surgiu a partir da experiência de sua infância. Yu cresceu num vilarejo na província chinesa de Zhejiang, área de monções com alta frequência de chuvas torrenciais. De forma quase inconsciente, conta ele, os agricultores da região recorriam a um método natural para lidar com as enchentes, utilizando fossos, terraços e lagos para direcionar as águas e armazená-las para as épocas de seca. Yu estudou silvicultura em Pequim antes de partir para os EUA, onde fez doutorado em paisagismo.
Quando retornou a seu país, em 1996, ficou espantado ao constatar que o principal sistema usado para lidar com as enchentes era produto da influência ocidental, principalmente de países europeus, onde as condições climáticas eram bem diferentes. Na Europa o clima é bem mais ameno, explica, é possível prever as chuvas com maior facilidade, e elas se distribuem ao longo do ano de forma mais igual. Na China é tudo muito mais extremo e imprevisível, mas ainda assim usava-se mais concreto que a natureza.
“Logo percebi que esse sistema era um total equívoco, porque não é resiliente. Era apenas uma cópia do modelo ocidental de urbanização”, diz Yu, segundo o qual o problema é sobrecarregar a chamada “infraestrutura cinza”, baseada no concreto. Os canais, represas e reservatórios não acumulam apenas água. Também acumulam risco.
As mudanças climáticas aumentaram a frequência e a intensidade de eventos extremos, como as enchentes no Rio Grande do Sul, incluindo regiões que antes não viviam esse tipo de problema, como a Europa. Segundo Yu, a principal causa por trás das inundações é a urbanização baseada no sistema tradicional de canalização, que rouba o espaço das águas e acelera sua velocidade, “como dar descarga no vaso sanitário”.
Como em geral as cidades estão no fim do fluxo das águas, perto de lagos e oceanos, é lá que ocorrem as piores inundações. A resposta está na natureza, afirma o arquiteto, defensor da “infraestrutura verde”: absorver as chuvas com um sistema de esponja baseado em vegetações perto de rios e lagos ou, quando isso não for possível, superfícies permeáveis.
De acordo com Yu, se 30% das áreas urbanas forem dedicadas às cidades-esponja, o problema das enchentes está resolvido. Ele reconhece que a urbanização acelerada e a especulação imobiliária podem ser um obstáculo para que o sistema tenha espaço suficiente, mas aí é preciso fazer com que a transformação das cidades se torne uma estratégia nacional. E não basta recriar as áreas urbanas. É preciso que o sistema de absorção seja ampliado às periferias e áreas agrícolas, para reter e desacelerar as águas em sua origem.
“Assim como na China, as enchentes no Brasil não começam nas cidades, mas em áreas elevadas. O sistema de absorção não pode ser localizado, é preciso ampliá-lo, criar não apenas cidades-esponja, mas um ‘planeta-esponja'”, afirma Yu, salientando a importância de conter o desmatamento. “Quando as florestas desaparecem no Brasil e a área é usada para agricultura mecanizada, não sobra espaço para a água. A Amazônia, por exemplo, é uma esponja natural. Devemos aprender como ela funciona.”
Problema milenar
Enchentes são um problema milenar na China, parte inseparável da História do país. Segundo a crença popular, a primeira das dinastias imperiais teve origem no feito heroico de um líder que conseguiu conter os danos causados por uma tempestade, há quatro mil anos. A urbanização desenfreada dos últimos anos no país tornou as cidades mais vulneráveis às inundações.
Em 2012, 79 pessoas morreram vítimas de enchentes em Pequim, o que levou o governo chinês a adotar o sistema de esponjas baseado no estudo de Yu. Era uma questão urgente, já que 60% das cidades chinesas sofrem inundações todo ano.
Segundo Yu, o método pode ser implementado em qualquer região do mundo, e é particularmente útil nas áreas com grande índice pluviométrico. Desde que foram adotadas como estratégia nacional na China, há dez anos, as cidades-esponja inspiraram projetos em mais de 200 municípios. A meta é que até 2030 o sistema absorva 70% das chuvas em épocas de eventos climáticos extremos, evitando alagamentos.