Quinta-feira, 02 de janeiro de 2025
Por Edson Bündchen | 8 de agosto de 2024
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul. O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.
Há poucos dias, numa animada discussão num grupo de WhatsApp, falava-se sobre a valorização do trabalho no campo e da suposta pouca importância que o cidadão urbano tributa aos labores agropastoris. A certa altura do debate, um dos membros do grupo sugeriu que uma possível solução para essa incômoda indiferença seria obrigar a população das cidades a plantar batatas, mandioca, cortar lenha, tratar vacas, porcos, limpar estrebarias e muitos outros afazeres típicos da vida no campo.
Outro, ainda mais exaltado pela possibilidade aventada, propôs também aos cidadãos urbanos recolher palhas de trilhadeira, limpar uma roça de milho com enxada, usando camisa de manga curta e, quando chegasse em casa, debulhar feijão na bordoada de manguá! Surge um terceiro empolgado consertador social para arrematar, sugerindo que o aprendizado completo de como é a vida na roça teria que incluir tirar leite de madrugada, na sequência, juntar o esterco no potreiro para depois levar para a horta e o pomar. Só depois de tudo isso, enfrentar a pé o caminho para a escola em chão batido, muitas vezes abaixo de muito frio e chuva.
Os cidadãos acima estavam, de fato, reclamando da assimetria entre aquilo que realmente ocorre em uma determinada realidade e a percepção de outro grupo, não submetido às mesmas condições e, portanto, incapazes de reconhecer eventual mérito nas agruras do outro. Esse tipo de fenômeno, contudo, não é tão raro quanto possamos imaginar.
Na verdade, a ideia de submeter alguém a uma determinada situação buscando-se reduzir assimetrias perceptivas poderia ser amplamente utilizada em vários campos com múltiplas finalidades. Esse afastamento entre situações vividas não apenas afeta o nível de empatia, como provoca algo ainda mais grave, um crescente distanciamento entre aqueles que detém a riqueza e o poder e a população de modo geral.
Esse quadro compromete cada vez menos os decisores, muitos deles encastelados em suas torres de marfim, indiferentes ao resultado de suas ações. O escritor Nicholas Taleb trata isso como sendo “não arriscar a própria pele”. Em outras palavras, existe cada vez maior afastamento às antigas leis de responsabilização, o que poderia ser um avanço em termos civilizacionais, mas em contrapartida gera uma assimetria cada vez maior entre o fazer e sofrer as consequências daquilo que se faz.
Na original e arrojada tese de Taleb, a complexidade atual do mundo exige mais e não menos simplicidade. O imperativo categórico de Kant “age somente, segundo uma máxima tal, que possas querer ao mesmo tempo que se torne lei universal” impõe-se demasiado rigoroso para um comportamento universal que é excelente no papel, mas um desastre na prática.
Somos animais locais, práticos e sensíveis à escala que nos cerca, diz o escritor levantino. Assim como argumentamos que o micro é melhor que o macro, também não precisamos de generalizações desnecessárias ao cumprimentar o manobrista do estacionamento. Devemos, desse modo, nos concentrar no nosso ambiente imediato: precisamos de regras mais práticas e simples. Quase sempre, o geral e abstrato é campo para atrair psicopatas pretensiosos e hipócritas intervencionistas, geralmente situados longe da ação, diz Nicholas Taleb.
É dessa simplicidade e praticidade que parecem cogitar e reclamar nossos amigos do primeiro parágrafo. É possível, ampliando o escopo da sugestão, incluir outras categorias. Nossos políticos, por exemplo, quem sabe obteriam maior credibilidade e coerência ao usar somente os serviços públicos acessíveis à massa de seus eleitores, ou até mesmo prestigiar escolas públicas para seus filhos e dependentes.
Empresários deveriam comer a mesma comida de seus empregados e donas de casa da classe média visitarem, com regularidade, as residências de suas domésticas. Talvez desse modo, todos arriscando um pouco mais a própria pele não teríamos tantos convenientemente separados da consequência de suas ações como tristemente testemunhamos nos dias de hoje.
* Edson Bündchen
* edsonbundchen@hotmail.com
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul.
O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.