Quinta-feira, 14 de novembro de 2024
Por Redação O Sul | 24 de agosto de 2024
Uma mulher transgênero da Austrália ganhou uma ação em que acusou de discriminação um aplicativo de mídia social exclusivo para mulheres. O acesso dela havia sido negado sob o argumento de que seria um homem.
O Tribunal Federal concluiu que, embora Roxanne Tickle não tenha sido discriminada diretamente, ela foi vítima de discriminação indireta (quando uma decisão prejudica uma pessoa com um atributo específico). A decisão foi que o aplicativo deveria lhe pagar o equivalente a 10 mil dólares australianos, ou mais de R$ 37 mil, além dos custos do processo.
Trata-se de uma decisão histórica em relação a identidade de gênero. E, no cerne do caso, estava a questão cada vez mais controversa: o que é uma mulher?
Em 2021, Tickle baixou “Giggle for Girls”, um aplicativo comercializado como um refúgio online onde as mulheres podiam compartilhar suas experiências em um espaço seguro e onde os homens não eram permitidos.
Para ter acesso, ela teve que enviar uma selfie para provar que era mulher, o que foi avaliado por um software de reconhecimento de gênero projetado para excluir homens.
No entanto, sete meses depois — após ingressar com sucesso na plataforma — sua participação foi revogada.
Como alguém que se identifica como mulher, Tickle alegou que tinha o direito legal de utilizar serviços destinados a mulheres e que era discriminada com base na sua identidade de gênero.
Ela processou a plataforma de mídia social e a CEO, Sall Grover, e pediu indenização no valor de 200 mil dólares australianos (mais de R$ 750 mil), alegando que “erro de gênero persistente” por parte de Grover havia provocado “ansiedade constante e pensamentos suicidas ocasionais”.
“As declarações públicas de Grover sobre mim e este caso foram angustiantes, desmoralizantes, embaraçosas, desgastantes e dolorosas. Isso levou indivíduos a postarem comentários de ódio contra mim na internet e incitarem indiretamente outros a fazerem o mesmo”, disse Tickle em um depoimento.
Transfobia
A equipe jurídica do Giggle argumentou ao longo do caso que sexo é um conceito biológico.
Eles admitem abertamente que Tickle foi discriminada — mas com base no sexo, e não na identidade de gênero. Recusar-se a permitir que Tickle usasse o aplicativo constituiu discriminação sexual legal, dizem eles. O aplicativo foi projetado para excluir os homens e, como sua fundadora considera Tickle um homem, ela argumenta que negar seu acesso ao aplicativo era legal.
Mas o juiz Robert Bromwich disse na sua decisão nessa sexta-feira (23) que a jurisprudência tem consistentemente considerado que o sexo é “mutável e não necessariamente binário”, rejeitando em última análise o argumento de Giggle.
Tickle disse que a decisão “mostra que todas as mulheres estão protegidas da discriminação” e que ela espera que o caso seja “um alívio para pessoas trans e com diversidade de gênero”.
“Infelizmente, obtivemos o julgamento que prevíamos. A luta pelos direitos das mulheres continua”, escreveu Grover no X, antigo Twitter, respondendo à decisão.
Conhecido como “Tickle vs Giggle”, o caso é a primeira vez que uma alegada discriminação de identidade de gênero é debatida pelo tribunal federal da Austrália.
Ele é um exemplo de como um dos debates ideológicos mais acirrados atualmente— inclusão de pessoas trans versus direitos baseados no sexo — pode se desenrolar nos tribunais.
Precedente legal
O resultado deste caso poderá estabelecer um precedente jurídico para a resolução de conflitos entre os direitos de identidade de gênero e os direitos baseados no sexo em outros países.
Crucial para compreender isto é a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres (CEDAW, na sigla em inglês). Este é um tratado internacional adotado em 1979 pela ONU – efetivamente uma declaração internacional de direitos para as mulheres.
A defesa de Giggle argumentou que a ratificação da CEDAW pela Austrália obriga o Estado a proteger os direitos das mulheres, incluindo espaços para pessoas de um único sexo.
Portanto, a decisão a favor de Tickle será significativa para todos os 189 países onde a CEDAW foi ratificada – do Brasil à Índia e à África do Sul.
Isso porque quando se trata de interpretar tratados internacionais, os tribunais nacionais muitas vezes analisam a forma como outros países o fizeram.
A interpretação da lei pela Austrália num caso que recebeu este nível de atenção da mídia provavelmente terá repercussões globais. Se, com o passar do tempo, um número crescente de tribunais decidir a favor das reivindicações de identidade de gênero, é mais provável que outros países sigam o exemplo.