Segunda-feira, 23 de dezembro de 2024
Por Redação O Sul | 2 de outubro de 2024
Pela primeira vez, Al Pacino, possivelmente o maior ator vivo, se abriu de forma honesta e emocionante. Na autobiografia Sonny Boy (Rocco), com lançamento mundial em 15 de outubro, o astro de 84 anos responsável por algumas das mais impactantes interpretações da sétima arte deixou de lado sua notória timidez para conceber um dos melhores livros sobre cinema já escritos.
Nascido em 1940, criado no violento bairro do Bronx, em Nova York, e filho de pais separados, Alfredo James Pacino enfrentou a pobreza extrema – certa vez chegou a desmaiar de fome. Menino levado e desregrado, passava a maior parte do tempo aprontando na rua com três amigos que anos depois viriam a morrer de overdose. Sua mãe, que tentara suicídio e sofria com transtornos mentais, também teve o mesmo fim trágico e morreu quando ele tinha 22 anos. Foi ela quem cunhou seu apelido de infância Sonny Boy [algo como ‘Filhinho’, em tradução livre], após ouvir a expressão em um filme dos anos 40. É simbólico, portanto, que a alcunha tenha virado o título de uma autobiografia sincera, bem humorada, e que jamais soa dramática.
Aos 25 anos, Al já acumulara uma série de empregos (faxineiro, lanterninha, entre outros) antes de se firmar no ramo da atuação. Ele fizera peças escolares e chamara a atenção de colegas e professores, que viam futuro no garoto. Mas esse futuro parecia distante, à medida que seu comportamento era, em certa medida, insolente e autossabotador. Foi depois de se destacar nos teatros do Bronx que ele recebeu a ligação que mudou sua vida: do jovem diretor Francis Ford Coppola para lhe convidar a interpretar o emblemático mafioso Michael Corleone na adaptação de O Poderoso Chefão.
“Conseguir um papel num filme já é um milagre. Oportunidades assim não existem para você. Parecia absurdo. (…) Comecei a duvidar que fosse ele [Coppola] mesmo no telefone. Talvez eu estivesse tendo uma crise nervosa. Quem era eu para aquilo cair no meu colo?”, escreve o ator, que de fato não era ninguém no show business, não tinha grandes contatos e estava longe de Hollywood. O estúdio responsável não o queria no filme e cobiçava nomes mais populares como Jack Nicholson, Warren Beatty ou Robert Redford. A Paramount, na verdade, havia rejeitado todos os nomes escolhidos por Coppola. “Rejeitaram [Marlon] Brando, pelo amor de Deus”, esbraveja.
Mas a galhardia do cineasta prevaleceu. Contra tudo e todos, ele contratou seu elenco e rodou um filme cujas gravações foram tensas do início ao fim. Aos interessados, vale conferir a versão ficcional e imperfeita (mas divertida) dos fatos na minissérie The Offer (2022). Pacino relata vários “desconfortos” nas primeiras semanas de produção. Os rumores eram que ele seria demitido a qualquer momento por causa do desempenho aquém do esperado. “Eu me sentia deslocado. Ninguém quer estar onde não é desejado”, lembra.
Ele então ouviu de Coppola que sua interpretação não estava dando certo e só continuou no filme porque o diretor reorganizou o cronograma de filmagens, decidindo adiantar a fatídica cena do restaurante italiano, na qual Michael se vinga de Sollozzo e McCluskey. A qualidade da atuação ali impressionou os executivos do estúdio, que deram uma segunda chance a Pacino. O resto é história.
Almoço ‘assustador’ com Marlon Brando e ‘nuvem sombria’
Para os fãs da saga da Família Corleone, há anedotas preciosas. A melhor delas se refere ao almoço “assustador” de Pacino com Marlon Brando, orquestrado por Coppola para que os dois atores se conhecessem melhor. Eles iriam fazer a primeira cena juntos, quando Michael encontra Don Vito, recém-baleado, no quarto do hospital – local escolhido para a aguardada refeição.
“Ele [Brando] estava comendo frango à cacciatore com as mãos, que estavam cobertas de molho de tomate. O rosto também. Quaisquer que tenham sido as palavras dele, minha mente consciente estava fixada naquela sujeira toda à minha frente. (…) Ele esfregou as mãos na cama branca do hospital e manchou os lençóis com molho, sem nem pensar, e continuou falando. E pensei: é assim que os astros de cinema se comportam?”, escreve o autor.
Com o sucesso estrondoso do longa-metragem, venerado até hoje, Pacino perdeu o anonimato, sua “ferramenta de sobrevivência”, mas viu a carreira decolar. Após ser nomeado ao Oscar, negou os papéis de Han Solo para Star Wars (1977), que seria lançado anos depois, e Billy The Kid, em Pat Garrett & Billy the Kid (1973), por falta de identificação com os roteiros. Em vez disso, estrelou o modesto O Espantalho (1973) ao lado de Gene Hackman, com quem não teve boa relação. “Não brigávamos nunca. Só havia um desconforto entre nós. Nunca vou entender por que. Ninguém se dá bem com todo mundo”, explica. Depois encarnou o policial Frank Serpico no cultuado Serpico (1973), que lhe rendeu sua segunda indicação à estatueta dourada – na cerimônia, chapado de Valium, ficou aliviado quando perdeu o prêmio para Jack Lemmon.
O Poderoso Chefão: Parte II (1974) instaurou uma “nuvem sombria” sobre sua cabeça, conforme ele define. Mergulhado em álcool e drogas (cocaína, jamais), o ator afirma que se sentiu isolado e que carregou o peso sentido por seu personagem na trama. Além disso, a relação com Coppola se deteriorava. O clima estava pesado. “Era muito difícil conviver com Michael Corleone. Era um lugar muito difícil de encontrar em minha própria alma”, relata. Mas isso não atrapalhou o enorme sucesso da sequência, dessa vez com Pacino ainda mais protagonista. Em certo trecho, ele compara os dois longas e reconhece que o primeiro tem mais apelo popular devido à presença de Brando.
Pacino nunca soube lidar com o excesso de fama, dinheiro e atenção. Passou por vários relacionamentos (Jill Clayburgh, Tuesday Weld, Diane Keaton, entre outras atrizes), lutou contra a depressão e chegou a fazer terapia para superar o alcoolismo. Seus demônios internos o atormentaram durante as gravações de Um Dia de Cão (1975), Justiça para Todos (1979) e Scarface (1983) – três títulos dos quais são resgatadas ótimas histórias de bastidores. No caso da jornada épica do traficante de cocaína Tony Montana, em Scarface, o ator destrincha a filosofia e as controvérsias por trás da produção que foi fracasso de crítica na época do lançamento, mas virou um hit com o passar dos anos. “Até hoje, é o maior filme que eu fiz. Os pagamentos residuais ainda me sustentam. Posso viver deles”, conta.
O astro também escreve sobre seu afastamento do cinema comercial após Scarface até o retorno triunfal às telonas, motivado principalmente por problemas financeiros, em Vítimas de uma Paixão (1989), antes de reviver Corleone em O Poderoso Chefão: Parte III (1990), desfecho da trilogia pelo qual ele não morre de amores, e finalmente vencer seu único Oscar por Perfume de Mulher (1992) com a performance do tenente-coronel cego Frank Slade.