Terça-feira, 26 de novembro de 2024
Por Miguel Pretto | 26 de outubro de 2024
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul. O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.
Um dos conceitos mais conhecidos e explorados em romances, filmes de Hollywood, jogos de videogame e diversas outras mídias que por vezes nos passa despercebido é o da jornada do herói, ou monomito. Essa terminologia foi descrita pela primeira vez em 1949, por Joseph Campbell, no livro “O herói de mil faces”. O autor percebeu que, em diversas culturas e mitologias, era possível extrair um padrão de estruturação e etapas que o herói atravessava ao longo de sua aventura.
A ideia de que grande parte dos mitos, contos e épicos segue uma estrutura parecida é interessante porque o ser humano tende a entender melhor os conceitos quando consegue identificar padrões. De poemas épicos (“Ilíada” e “A Odisseia”) e jogos (“Ocarina of Time”) a romances clássicos (“Senhor dos Anéis”), o conceito permeia as nossas vidas, pois a jornada se inicia no momento em que passamos por uma transformação.
Toda jornada que transforma um herói passa por uma sequência de eventos e pode ser dividida em Partida, Iniciação e Retorno. Cada uma é separada em subetapas menores, cujo objetivo é facilitar o entendimento e a identificação de cada uma delas, como os arcos de uma peça teatral ou os capítulos de um livro, servindo para o espectador entender o que o autor busca transmitir em cada momento.
A etapa inicial, conhecida como Partida, é subdividida em quatro partes: chamado à aventura, recusa do chamado, encontro com o mentor, travessia do limiar. Nessa fase, somos apresentados ao protagonista, o que o motiva, quais são seus medos e os anseios que o levam a iniciar a jornada. Durante a Iniciação, dividida em provas e desafios, revelação, encontro com a tentação e última provação, o herói enfrenta seus maiores desafios até então. No Retorno, ele já cumpriu seu objetivo principal, porém ainda precisa retornar ao ponto de início, trazendo consigo todo o aprendizado obtido durante a jornada nas subetapas caminho de volta, última provação e retorno. A partir desses pontos universais que permeiam a jornada do herói, é possível identificarmos figuras contemporâneas que passaram ou passam por situação parecida?
Imagine a seguinte história: indignado com os rumos recentes do seu país, um jovem economista, que já tinha certo renome como consultor e comentarista político em programas de TV, decide lançar-se na política com o objetivo de restaurar a dignidade que um dia a nação já teve. Decidido e dotado de convicções fortes, eloquente em sua fala e convicto de suas posições, ele se elege como deputado em cima de uma pauta liberalizante e contra a classe política que comanda o país há anos. Com essa pauta de outsider, ele se candidata a presidente, conquista amplo apoio da população indignada e é eleito. A quem me refiro? Ao atual presidente da Argentina, Javier Milei.
Até a eleição para presidente, é plausível encaixar as provações e os desafios encontrados por Milei na primeira etapa do monomito, a Partida, na qual a indignação com o país que sucumbe leva o indivíduo irresignado à ação. Suas provações até assumir a Presidência foram as mais diversas, do embate com a alta classe política argentina durante os debates até as suas promessas por vezes consideradas inviáveis (como a dolarização da economia e o forte programa de corte de gastos).
Uma vez eleito, passamos para a segunda etapa na jornada de Milei, a Iniciação, na qual geralmente ocorrem os maiores feitos, desafios e provações do herói em sua jornada. Os desafios são muitos: inflação enorme, gastos públicos exorbitantes, população extremamente pobre e assistida pela máquina estatal.
Alguns desses problemas persistem na Argentina, mas é possível verificar uma melhora. O profundo corte de gastos, somado à desvalorização da moeda argentina e aos incentivos para investimentos externos dentro do país, auxiliou no controle da inflação, levando-a ao menor patamar em anos. Outra vitória do argentino foi no primeiro lucro em sete anos da empresa de aviação Aerolíneas Argentinas, devido a uma forte reestruturação da companhia. Os problemas se mantêm quando se trata da relação com as universidades. Recentemente foi vetada uma lei de financiamento para universidades públicas, gerando protestos. A pobreza na Argentina é outro desses problemas, pois ainda se mantém em patamar elevado, provando que não se derruba o Leviatã do dia para a noite.
Não sei dizer se Milei obterá sucesso na sua busca por transformar a Argentina nem se sua jornada irá lhe confirmar o título de herói, o que seria merecido se ele for o responsável por recuperar uma nação assolada por décadas de crises e más gestões. Ele também poderia se tornar o vilão, no caso de ocorrer de o país afundar ainda mais.
A jornada de Milei está longe de terminar, assim como os seus objetivos, mas tudo indica que ele seguirá defendendo as suas ideias. Seu recente discurso na ONU é prova de que está disposto a isso.
Ao final, veremos qual das duas tradições vencerá. Se for a da jornada do herói, a Argentina imitará o roteiro descrito por Campbell, e o caminho do país tenderá a ser mais luminoso. Caso ganhe a tradicional mania dos argentinos de quererem repetir os mesmos erros e esperar resultados diferentes, a trajetória do país seguirá imutável, rumo à escuridão do abismo.
Miguel Pretto, engenheiro e associado do Instituto de Estudos Empresariais (IEE)
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul.
O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.