Terça-feira, 24 de dezembro de 2024
Por José de Souza Martins | 24 de dezembro de 2024
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul. O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.
Sou de uma geração, a do fim da Segunda Guerra Mundial, que ainda conheceu o Natal cristão. Nós não sabíamos, mas era um Natal agônico e residual, que se transfigurava lentamente. Era uma celebração, uma festa de família, que juntava ainda mais o que já estava junto. Era um momento de comunhão no almoço natalino que seguia tradições de família até até nos ingredientes à mesa. Cada alimento do almoço de Natal era um alimento ritual.
Mesmo a taça de vinho tinto, feito em casa por meu avô, que se recusava a servir e a tomar vinho comercial. Temia os vinhos “batizados”, os que, dizia, haviam recebido acréscimos indevidos que afetavam a pureza da bebida.
Mesmo as crianças recebiam sua pequena porção de vinho, misturado com um pouco de água e um pouco de açúcar. Para que aprendessem a consumi-lo, como alimento que era na cultura camponesa de meus pais e avós.
Ainda criança, via meu avô, em determinada época do ano, ficar de ceroulas, lavar os pés e as pernas, as mãos e os braços, entrar na pipa em que depositara a uva e pisá-la em roda, numa espécie de dança, em que ia e voltava.
Depois, levá-la, rodando-a, para o escuro cômodo de fundo de quintal, que era também o de sua oficina de carpinteiro. Acompanhado dos dois netos, visitava-o todos os dias de manhã para ouvir o som da fermentação e avaliar o ponto em que se encontrava.
Em determinado dia, com um copo na mão, abria uma torneira da parte inferior da pipa, a uns 20 centímetros acima da base, para reter no fundo a borra da fermentação. Recolhia um pouco do vinho em processo de fabricação, sentia o aroma, olhava o copo atentamente contra a luz várias vezes e voltava para dentro de casa. Comentava com minha avó o resultado da verificação.
Até a manhã em que o vinho já estava com uma cor rubi, lindíssima. Punha um gole na boca, demorava provando-o e dizia a meu irmão e a mim, de 3 e 5 anos idade: “Está pronto”.
Nessa altura já havia fervido as rolhas e lavado com água fervente as garrafas em que o vinho seria engarrafado. Era o vinho de dois Natais depois. O do Natal daquele ano fora feito dois anos antes. As garrafas eram devidamente enterradas na areia do porão da casa para evitar a oxidação do vinho.
O Natal, portanto, começava dois anos antes, ciclos natalinos de datas diversas sobrepondo-se, fluindo aos poucos, conforme o ritmo da natureza. Era o tempo litúrgico da tradição e do respeito pelo sagrado.
O dia a dia não era profano. O sagrado regulava o cotidiano. À noite, após o jantar, meus avós e os netos, quando estávamos com eles, rezavam o terço. Ao deitarem eles e os netos rezavam o “Com Deus me deito e com Deus me levanto”.
Minha avó ia à missa todos os dias, logo cedo. Confessava e comungava. Foi assim na segunda-feira em que após o café da manhã levantou-se para lavar a louça e começar a fazer o almoço. Deu o primeiro passo e caiu morta. Estava preparada segundo as regras daquele mundo em que não havia separação entre profano e sagrado, o lento e cauteloso mundo da tradição.
Aquele mundo terminava. Vi isso com a chegada do Papai Noel, um ser de importação, a trazer consigo neve artificial feita de algodão. Ele era o agente de transformação dos brasileiros em estrangeiros. Usurpara o lugar dos Reis Magos, símbolos do ciclo natalino, o da transição do ano velho para o ano novo.
Os pais tentavam infiltrar no tradicionalismo dos costumes a estranhíssima figura de velho barbudo. Entrava em casa sorrateiramente, durante a noite de 24 de dezembro, para premiar cada criança com o brinquedo que havia pedido ou castigá-la com brinquedo diferente do solicitado.
Curiosamente, os filhos das famílias de operários, a maioria do bairro fabril em que eu morava, um bairro de muitas e grandes fábricas, nunca recebiam o que haviam pedido que os pais encomendassem de Papai Noel. Os filhos da meia dúzia de pequenos comerciantes do bairro recebiam exatamente o que pediram. Não raro, mais de um presente.
Aos 5 anos de idade, eu desconfiava que Papai Noel não gosta de quem trabalha e que quem trabalha se torna pobre. Para mim era difícil aceitar que meu presente fosse, portanto, um castigo.
Minha mãe, que tinha 3 meses de idade quando a família de meus avós imigrou para o Brasil, na imigração subvencionada para trabalhar como colonos em fazenda de café do interior, ainda conheceu antigos escravos que continuavam a trabalhar nos cafezais.
Ela cresceu convencida de que as pessoas ficavam negras por trabalhar no café. Tinha pavor de tomar café e em consequência tornar-se negra como os antigos escravos. Nunca me disse nada, mas me dava a impressão de que ela achava que o café continha a mandinga da escravidão.
* José de Souza Martins – sociólogo
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul.
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