Sábado, 23 de novembro de 2024
Por Redação O Sul | 23 de junho de 2018
Nelson Rodrigues gostava de usar o futebol como ponto de partida para descrever a alma do brasileiro. O dramaturgo e cronista esportivo sabia que o esporte era capaz de mexer com a autoestima da população e atiçar o orgulho nacional. Pois antes mesmo da estreia da Seleção Brasileira no Mundial, disputado na Rússia, no último domingo, aquela corrente pra frente foi substituída por uma enorme sensação de vergonha.
Na véspera do empate contra a Suíça, um vídeo com um grupo de torcedores brasileiros assediando uma jovem que não falava português e debochando dela levou muita gente a se perguntar: o que passa na cabeça de homens que agem assim?
Professora da UnB e pesquisadora do Instituto Anis, a antropóloga Debora Diniz acha que o grupo se comportou como quem adquire um “souvenir”.
“Quiseram ter algo como uma lembrancinha de viagem, porque viram na Rússia o objeto erótico de seus sonhos, a mulher branca e loura, em uma situação vulnerável.”
Em menos de 20 segundos, o vídeo expôs o machismo e os preconceitos de uma sociedade estruturada em torno de desigualdades entre sexos, raças e classes sociais. No lado dos algozes, estava a parcela mais privilegiada da população brasileira: homens, brancos e de alto poder aquisitivo, já que, segundo levantamento feito pelo O Globo, em março, ir à ao Mundial não saía por menos de R$ 13 mil.
“Quando os autores do vídeo fazem a moça pronunciar ‘boceta rosa’ sem que ela saiba o significado, há, além da objetificação, uma exaltação da branquitude do órgão sexual daquela mulher”, argumenta a professora da USP Marcia Thereza Couto, doutora em Sociologia e especialista em violência e relações de gênero.
Argentinos e colombianos
Pior foi saber que não se tratou de um caso isolado: logo começaram a circular pelas redes outras gravações que mostram comportamentos semelhantes de homens brasileiros, argentinos e colombianos. Em um vídeo com brasileiros, o alvo é uma criança, um menino convidado a repetir frases como “eu sou um viado” e “eu dou para o Neymar”. Fica a imagem de que o comportamento chulo e bravateiro, além da homofobia, são traços da América Latina. Será?
“O machismo latino está tão entranhado que não importa para esses homens onde eles estão, eles não sabem agir de outra forma”, aponta Debora.
Mesmo em outro país, o fato de esses homens estarem na maior parte das vezes em grupo pode, de acordo com especialistas, ter servido como elemento encorajador: no vídeo de maior repercussão, a jovem loura, cercada por estranhos, é a minoria.
“Agir em bloco empodera, mesmo quando se está em um outro país, regido por outros códigos de controle e licenças sociais”, explica o antropólogo Roberto DaMatta. “Muitas vezes, quando se está em grupo, a consciência das responsabilidades individuais se dilui porque quem faz parte do coletivo se sente mais protegido, a ponto de fazer desaparecer qualquer sensação de ‘timidez’”.
As imagens também levantam outra discussão: o ambiente do futebol seria mais fértil para esse tipo de manifestação, mesmo num momento em que o debate público é dominado pela condenação a atos racistas, misóginos e homofóbicos?
“O futebol sempre foi um território de disputa, dominado por homens. E muitos deles ainda não se libertaram dos mitos da masculinidade e da mentalidade patriarcal, que se instalaram no inconsciente coletivo há cinco mil anos”, pondera a psicanalista e escritora Regina Navarro Lins.
Se fosse sua irmã ou filha
Passada uma semana da aparição do primeiro vídeo, a náusea coletiva não arrefece. A cada momento, um novo agressor é identificado, em parte graças à indignação de amigos e conhecidos dos próprios envolvidos. Eles terão que responder a inquérito aberto pela Procuradoria da República no Distrito Federal. O órgão apura se eles cometeram crime de injúria ao expor a torcedora a uma humilhação pública.
O debate em torno do caso e as justificativas dos envolvidos revelaram ainda outras nuances. Ao se defender da reação ao vídeo, um dos participantes afirmou que “fosse na favela ou no carnaval, isso seria considerado normal”, culpou o álcool em excesso e ainda frisou que quem estava no vídeo eram “pais de família” e “trabalhadores”. Para Márcia, esse tipo de resposta evidencia uma recusa em reconhecer um desvio inaceitável no ato, independentemente de local e circunstâncias.