Quarta-feira, 25 de dezembro de 2024
Por Redação O Sul | 21 de agosto de 2019
Quando estive na Bolívia durante a campanha presidencial anterior, em 2014, me espantei pelo fato de que a pauta de gênero era praticamente inexistente da plataforma dos candidatos. Além do fato de serem todos eles, é claro, homens.
Estaria tudo bem se o país fosse um paraíso igualitário que tratasse bem suas mulheres. Mas não é. Muito pelo contrário. Naquela época, a Bolívia era o país que mais matava suas mulheres, proporcionalmente, em toda a América do Sul.
Volto a La Paz agora, novamente para cobrir a campanha eleitoral. Encontro um cenário um pouquinho, apenas um pouquinho, melhor. A pauta de gênero entrou, ainda que lateralmente e a fórceps, primeiro na agenda do governo, e agora na da campanha dos candidatos.
O governo tomou algumas medidas: tipificou o feminicídio como delito e estabeleceu a paridade de gênero no Congresso (hoje há uma cota de 50% do parlamento para as mulheres). Até mesmo uma lei de aborto entrou em debate parlamentar, mas foi derrubada. Ah, e dessa vez há uma candidata mulher, Ruth Nina Juchani, uma sindicalista do pequeno partido PAN (Partido da Ação Nacional).
Também a sociedade se moveu um pouco mais, e isso pode ser sentido nos debates sobre as eleições e no fato de mesmo a fraca imprensa local noticiar melhor os casos de abusos. Além disso, meio que de carona nos fortes movimentos feministas da Argentina e do Chile, as bolivianas começam a se mobilizar por seus direitos, promovendo marchas e passeatas.
O problema é que são passos de tartaruga para resolver um problema realmente grave.
Cinco anos depois, a Bolívia ainda é o país com a maior taxa de assassinatos de mulheres da América do Sul, segundo o Cepal (Comisión Económica para América Latina y el Caribe).
Duas de cada 100 mil mulheres são assassinadas na Bolívia, enquanto no Brasil o índice é de 1,1. Depois da Bolívia, o vice-campeão é o Paraguai, com 1,6 por 100 mil.
Só no ano passado, foram registrados 73 feminicidios, uma cifra recorde. Mesmo com a tipificação do delito em 2013, e com o estabelecimento de penas de 30 anos para quem comete esse tipo de crime, apenas 15% dos casos terminaram com uma sentença judicial.
Um outro número espantoso é que, da totalidade dos casos policiais na Bolívia, 40% são de violência doméstica. E, deste número, 90% envolvem a embriaguez do marido ou parceiro da vítima.
O que falta para atacar de fato o problema? Maior vontade política de fazer com que a lei seja cumprida. A paridade de gênero no Congresso é louvável, mas tem críticos, como a feminista María Galindo, que diz que se trata de medida cosmética, pois, segundo ela, as mulheres que entram nas listas para eleição são controladas por partidos e chefes políticos tradicionais.
Lembro-me de que, quando entrevistei Evo Morales, naquela ocasião, e o indaguei sobre legalização do aborto e mais direitos para as mulheres, ele me respondeu que esta era uma agenda “europeia”, de povos “já bem alimentados”, e que sua prioridade era tirar a Bolívia da pobreza.
É difícil que exista muito avanço se Morales, caso resulte reeleito como dizem as pesquisas, não mude de ideia sobre esse assunto. Com isso, vem perdendo muito apoio de alas da esquerda, que sentem que o governo deixou esse aspecto de lado nos últimos 14 anos de governo.
As eleições ocorrem em 20 de outubro. Evo Morales lidera, mas é possível que não vença num primeiro turno como em 2014. A disputa está mais apertada e pode haver um segundo turno, em dezembro. Que papel terão as mulheres nessa disputa? Veremos nas próximas semanas. (Sylvia Colombo, do jornal Folha de S. Paulo)