Sábado, 23 de novembro de 2024
Por Filipo Studzinski Perotto | 12 de abril de 2020
Namorada Francesa
Diego passou um ano na França por conta de um intercâmbio acadêmico. Lá conheceu Stéphanie. Começaram a namorar. No verão seguinte, depois de três meses separados, ela é quem veio vê-lo no Brasil, de férias. Como Diego estava trabalhando, emprego novo, às vezes era seu irmão mais novo, Diogo, quem passeava com a francesa, mostrando a cidade de Porto Alegre. Ela achava bonitos certos ângulos daquela feiura urbana. Fotografava tudo. Diogo não falava francês. Stéphanie tampouco falava português. Não falavam nenhuma língua em comum, mas não havia constrangimento: os dois caminhavam em silêncio, contemplativos. Quando havia necessidade, compreendiam-se por gestos. Diogo era branco. Um dia passeavam no calçadão de Ipanema. Terminaram a tarde vendo o pôr-do-sol no Guaíba.
Diogo era negro. Um dia passeavam no calçadão de Ipanema. A polícia, que fazia rondas por ali com frequência, não tardou a desconfiar daquele menino negro caminhando com uma “gringa” de máquina fotográfica pendurada no pescoço. Interpelaram o rapaz, que tentou explicar a história: tratava-se da namorada francesa do irmão. Não colou. Stéphanie bem que tentou esclarecer, com seus gestos e com as poucas palavras que sabia, que estava havendo um grande equívoco, mas o policial, não entendeu, e vendo a agitação da menina, tratou de acalmá-la. Sabiam como era. Situação sob controle. Foram terminar o dia na delegacia.
Passageiro Suspeito
Horário de pico, ônibus super lotado. Luís ia espremido entre três fileiras de pessoas que se alinhavam no corredor estreito. Ruim era quando alguém queria atravessar toda aquela massa humana para descer na próxima parada. Nesse horário, o motorista, forçado a cumprir tabela, acelerava e freava sem maiores sutilezas. De repente, gritarias. Era uma jovem lá na frente muito nervosa, haviam furtado seu telefone celular novinho, faltavam ainda muitas prestações para pagar. Luís era branco, estava distraído, sonolento. Depois de muita confusão, o ônibus acabou seguindo viagem.
Luís era negro, logo ficou apreensivo. Lembrou-se de que havia deixado seus documentos em casa. O cobrador era quem estava acalmando a menina. Tentou dissuadi-la: “não havia nada a fazer”, mas a moça insistiu. O motorista acabou parando num posto policial próximo. Manteve as portas fechadas, fez sinal a um PM, que embarcou. O caso foi relatado, todo mundo seria revistado. Houve protesto geral, gente cansada, atrasada. “Pago meus impostos”. O policial ponderou, apenas os suspeitos iriam descer do coletivo. Desceram, empurrados, cinco pretos, entre eles Luís. Quando finalmente deixaram-no sair de lá, duas horas mais tarde, ligou para a mulher, que já estava em pânico. Envergonhado, pediu que não contasse nada daquilo à filha pequena. Diga que foi o trânsito.
Chama o Porteiro
Geisa mora num daqueles enormes edifícios dos bairros de classe média alta do Recife. Naquela tarde, chegava em casa apressada, com mil coisas por resolver. Ia deixando o portão bater, mas viu aquela senhora chegando logo atrás dela, bem vestida, com óculos escuros gigantes. Num gesto rápido, segurou o portão. Geisa era branca, a madame aproveitou para entrar, agradecendo com um sorriso e um aceno de cabeça.
Geisa era negra. A madame foi entrando, sem olhar para ela. Depois, retornou-se, como quem precisa de algo. “Querida, você trabalha aqui?”, perguntou franca. “Não”. “Você pode chamar o porteiro pra mim?”. “Não”, e foi-se. Ainda bem que Geisa é do movimento negro. Só assim para ter uma presença de espírito tão afiada!
* Filipo Studzinski Perotto nasceu em Porto Alegre, e atualmente é pesquisador na Universidade de Toulouse, participando de movimentos intelectuais de esquerda no Brasil e na França.
** Este artigo é de inteira responsabilidade do autor, cível e criminal, não refletindo a opinião do jornal O Sul. Sua publicação não implica ônus a qualquer título ao jornal.
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