Terça-feira, 19 de novembro de 2024
Por Edson Bündchen | 30 de abril de 2020
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul. O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.
Vivemos dias tenebrosos, incertos e paradoxais, terreno fértil para o florescer do melhor e pior da natureza humana. Convivem exemplos extraordinários de solidariedade e devoção ao próximo, em contraste com a intolerância e a ausência de empatia, que experimentam o seu apogeu no meio de uma crise inédita que amedronta o mundo.
Essa contradição afeta todos os setores da sociedade, mas tem sido mais visível na arena política. Emergem diariamente conflitos, ausência de diálogo e agressividade, onde deveríamos assistir a maior temperança, equilíbrio e sabedoria. Esse estado de coisas é particularmente preocupante no momento em que atravessamos a nossa mais grave crise da história recente, e não conseguimos visualizar lideranças capazes de desanuviar o tumultuado cenário.
De onde vêm esses sentimentos antagônicos que denotam a face mais cruel e negativa de cada um de nós, mas também revelam afetos de enorme empatia e comiseração para com os outros? Thomas Hobbes, filósofo inglês, tinha uma visão cética em relação ao nosso comportamento. Ele acreditava que o homem nasce mau, e que devido a instintos de sobrevivência é capaz de fazer qualquer coisa. Para Hobbes, o convívio entre as pessoas não é regido pela boa vontade, tampouco é agradável. Convivemos apenas de modo tolerável, convencional e aceitável. Em situações de disputa, viramos lobos de nós mesmos, deixando aflorar os piores e malignos instintos em nosso comportamento.
Mas há quem pense diferente, e vê no ser humano uma tábula rasa, uma folha em branco a ser escrita na jornada existencial. Nessa linha, Rousseau, outro gigante da filosofia, afirma que, ao contrário do que defendia Hobbes, nascemos bons, ingênuos, puros e inocentes, mas a sociedade nos corrompe e nos impinge os sentimentos que nos fazem entrar em conflito com os nossos semelhantes.
Marcada por ambos os espectros do melhor e pior do comportamento humano, a convivência política no Brasil segue uma marcha que parece abraçar com mais fervor os preceitos do autor de O Leviatã. Como lobos, homens e mulheres ungidos pelas urnas, se digladiam numa feroz disputa, onde a astúcia, a calúnia e as artimanhas que trazem a assinatura de Maquiavel, sobrepujam por larga margem a convivência harmoniosa e sensível aos anseios de uma sociedade que a tudo assiste, inerte e impotente. A internet, por seu turno, potencializa uma indústria de Fake News, na qual reputações são atacadas com espantosa prodigalidade, muitas vezes sem reparo possível. De modo constrangedor, palavras são empenhadas e desditas sem pudor, promessas quebradas sem maiores consequências e, em nome de uma suposta governabilidade, acordos pouco republicanos julgados superados no tempo, voltam ao palco com enorme volúpia e destemor. Prevalece a ética da conveniência, dos interesses e do oportunismo.
Percebo que não é mais possível que tenhamos uma ética governando a política e outra ética orientando as ações na esfera privada. É chegada a hora dos princípios, dos valores e da justiça valerem para ambos os setores. Não é aceitável que o mal feito tenha ainda justificativas sob o véu maquiavélico de que os fins justificam os meios. Há que haver espaço para uma ação mais cooperativa e humana, no qual os conceitos como lealdade, integridade, confiança, honestidade e compaixão não tenham que ser desidratados de significado para caber no jeito de se fazer política. Entretanto, como toda mudança, essa também passará pela indelegável ação cívica de cada um de nós. Somente assim, teremos a base para uma sociedade melhor e mais justa.
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul.
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