Domingo, 12 de janeiro de 2025
Por Redação O Sul | 2 de junho de 2020
O vídeo da reunião ministerial do governo Bolsonaro foi divulgado em meados de maio, mas continua a ter desdobramentos. Um dos principais envolve a referência que o presidente Jair Bolsonaro fez ao artigo 142 da Constituição Federal, citando a possibilidade de “intervenção” no País.
“Nós queremos fazer cumprir o artigo 142 da Constituição. Todo mundo quer fazer cumprir o artigo 142 da Constituição. E, havendo necessidade, qualquer dos Poderes pode, né? Pedir às Forças Armadas que intervenham para restabelecer a ordem no Brasil”, disse Bolsonaro na reunião.
Depois disso, o artigo começou a ser citado por apoiadores do presidente para defender a tese de que as Forças Armadas seriam uma espécie da mediador da queda de braços entre o presidente e o STF (Supremo Tribunal Federal), que autorizou investigações envolvendo filhos de Bolsonaro. Nessa visão, o presidente poderia convocá-las para intervir no poder judiciário.
O advogado Ives Gandra Martins também defendeu essa tese. No entanto, essa interpretação é considerada totalmente equivocada por juristas e professores de direito não ligados ao governo.
Mas afinal, o que diz o artigo e o que ele significa?
Regramento militar
O artigo 142 da Constituição não trata de divisão entre os poderes, mas descreve o funcionamento das Forças Armadas. Segundo constitucionalistas, em nenhum momento ele autoriza qualquer poder a convocá-lo para intervir em outro.
O texto é o seguinte:
“As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”
Roberto Dias, professor de direito constitucional da FGV-SP (Fundação Getúlio Vargas), diz que “essa interpretação de que esse artigo seria uma autorização para uma intervenção militar é absurda”.
“É como se a Constituição previsse sua própria ruptura, e logicamente é algo que não faz sentido. É uma interpretação jurídica, política e logicamente insustentável”, diz ele.
Uma intervenção militar é uma ruptura da ordem constitucional, explica Dias, porque a separação e independência de poderes e as garantias individuais são as principais bases da Carta.
A análise é mesma de outros juristas, como a professora de direito Vania Aieta, da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).
Ela explica que o fato de o artigo estabelecer as Forças Armadas sob a autoridade do presidente da República permite que ele o acione em caso de guerra com outros países, ou em casos como auxílio à grandes eventos, como na Copa do Mundo. Mas não dá à ele o direito de intervir em outros poderes — muito pelo contrário, diz explicitamente que “são instituições nacionais permanentes e regulares” destinadas à “à garantia dos poderes constitucionais”, não à intervenção neles.
“É uma compreensão errônea que o presidente tem. Ele não faz uma distinção entre o público e o privado — sempre fala ‘meu Exército, meu tribunal, meu procurador-geral’, como se fosse incorporado um caráter privado à essas funções, como se estivessem ligadas à pessoa de Bolsonaro, e não ao cargo de Presidente da República”, diz ela.
“Bolsonaro não conhece o que é governo e o que é administração pública.” Governos são formados por representantes do povo, eleitos a cada quatro anos, e tem caráter transitório. Já a administração pública são as políticas de Estado, ou seja, têm caráter permanente.
“As Forças Armadas pertencem ao Estado brasileiro, não para satisfazer desejos pessoais do presidente”, diz Aeita.
A professora de direito constitucional da UFPR (Universidade Federal do Paraná) Estefânia Barboza reforça essa análise.
“De maneira nenhuma pode-se imaginar que as Forças Armadas são do presidente em proveito dele da família dele. Porque a questão está sendo colocada (e gerando atritos) é a investigação sobre os filhos”, afirma.
Não existe Poder Moderador
A fala do presidente e a forma como o artigo tem sido usado por seus apoiadores, diz Roberto Dias, da FGV-SP, tentam fazer parecer “como se houvesse uma previsão constitucional que dá às Forças Armadas a função de um poder moderador”.
O Poder Moderador era previsto na Constituição do Império de 1824, e ele funcionava como mediador entres os três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) em caso de divergências, dando a última palavra.
“Estamos na vigência da Constituição de 1988, que não prevê um poder que estaria acima dos outros para intermediar. A Constituição não dá às Forças Armadas o poder de intervenção militar em outros poderes”, diz Dias. “O presidente tem 200 anos de atraso na sua interpretação da Constituição.”