O Brasil tem mais de 11 mil partos por ano resultando do que a lei qualifica como “estupro de vulnerável”, as relações sexuais com menores de 14 anos. O novo estudo que revela esta cifra também indica que mais de 40% das meninas nessa condição não iniciam o exame pré-natal no período adequado.
O trabalho que levantou o número foi liderado pela epidemiologista Luiza Eunice Sá da Silva, do Centro Internacional de Equidade em Saúde da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Junto com seus coautores, a pesquisadora usou bases de dados oficiais para estimar a taxa de ocorrência do problema.
“Com dados do Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos (Sinasc) de 2020 a 2022, correlacionamos o início oportuno do pré-natal (primeiro trimestre da gestação) com a idade da adolescente, região, raça/cor e escolaridade. Considerando a idade estimada na concepção, estimamos que 11.607 partos anuais resultam de estupro de vulnerável”, escreveram Silva e colegas.
A realização do estudo, segundo os autores, foi motivada pela criação do projeto de lei 1904 de 2024, que prevê pena de homicídio simples para aborto após 22 semanas de gestação. Na opinião dos médicos, na prática essa proposta impede o direito à interrupção da gravidez para a maioria dessas meninas.
Com mais de um terço das vítimas de estupro de vulnerável incapaz de iniciar o pré-natal dentro do prazo recomendado (a 12ª semana de gestação), na prática poucas delas conseguem cumprir o périplo médico e burocrático necessário para abortar legalmente.
“Demoras no reconhecimento da gestação e na comunicação para a família contribuem para o início tardio do pré-natal e para a decisão de abortar”, escrevem os cientistas. “A proposta de limite do prazo para abortos legais irá atingir principalmente as adolescentes mais vulneráveis em termos socioeconômicos e raciais.”
O grupo autor do estudo, coordenado pelo epidemiologista César Victora, da UFPel, concluiu o trabalho em outubro e divulgou em versão preliminar do artigo científico resultante em forma pré-print (ainda sem revisão independente) na plataforma SciELO.
Só depois da divulgação do trabalho, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou internamente uma outra matéria legislativa controversa, a Proposta de Emenda Constitucional 164 de 2012, que efetivamente extingue o aborto legal em caso de estupro ou risco de saúde.
O estudo da UFPel dá uma estimativa do tamanho da população de meninas que precisam de suporte após estupro de vulnerável e perderiam o direito à interrupção da gravidez no caso de aprovação final do PL ou da PEC.
“O número de 11 mil meninas que nós estamos vendo no estudo, na verdade, é a ponta do iceberg. Esses são os casos em que elas chegam a dar à luz. Quando elas abortam, ou a criança é natimorta, o dado não entra no Sinasc”, afirma Victora.
Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública indicam que restrições parciais ou totais ao aborto vão prejudicar muitas adolescentes pequenas. Em 2023, o Brasil registrou 74.930 estupros, dos quais 56.820 (75%) foram estupros contra vulneráveis. (Os dados do Sinasc no estudo sobre partos vão só até 2022.)
A preocupação dos pesquisadores é que uma nova lei piore o acesso de meninas ao direito de abortar, que já é muito precário. Segundo o Ministério da Saúde, o país realizou 2.687 abortos legais no ano passado, sendo que 140 foram de meninas até 14 anos de idade.
Segundo a psicóloga Daniela Pedrosa, que tem 26 anos de experiência em atendimento de meninas estupradas no Hospital da Mulher em São Paulo, o estudo da UFPel ilustra o que os profissionais na linha de frente já estão acostumados a ver.
“Quem chega mais tarde para fazer o pré-natal são justamente as crianças e adolescentes, até porque elas demoram mais para entender que estão grávidas”, diz Pedrosa.
Segundo a psicóloga, as vítimas em situação maior de vulnerabilidade social em famílias mais pobres e com pouca escolaridade são as mais afetadas, algo corroborado pelos dados do estudo da UFPel. O conceito de estupro de vulnerável, muitas vezes, não chega nessas meninas, por não terem recebido educação sexual.
“Há uma dificuldade delas em reconhecer aquilo como violência sexual. Nos crimes dessa faixa etária, os agressores são em geral conhecidos. Podem ser pai, tio, padrasto… Eles tem função também de proteger aquela menina, e ela pode demorar para entender aquilo”, ressalta Pedrosa. As informações são do jornal O Globo.