Há duas semanas, tive a honra de estar com o grande cantor e compositor Lenine, que acabara de lançar “Carbono”, mais um dos seus belíssimos trabalhos. Da conversa também participaram dois queridos amigos: o cantor e compositor Juca Novaes e o letrista Carlos Rennó.
Conversa vai, conversa vem, falei a Lenine da sua capacidade de cantar letras imensas, como a de “Quede Água” (escrita por Rennó e musicada por Lenine), sem recorrer a telas etc. Lenine disse que não decora textos; fotografa-os na memória, fecha os olhos, vê as imagens e… Aí eu lhe perguntei se ele conhecia a origem de “decorar”. Ele disse que não conhecia, mas foi logo querendo saber qual é.
O caro leitor sabe qual é? Será que “decorar” tem algum parentesco com a expressão “de cor”? Tem, sim. Antes que eu diga qual é a origem disso, pergunto a quem sabe um pouco de inglês: como se diz “Eu sei de cor” na língua de Shakespeare? É mais ou menos assim: “I know by heart”. E o que é “heart”? É “coração”. Sim, sim, esse “cor”, que vem do latim (“cor”, “cordis”), significa “coração”. Uma atitude cordial nada mais é do que uma atitude tomada com o coração.
Quem procura no “Houaiss” a palavra “decorar” encontra mais ou menos esta explicação: “preposição latina ‘de’ + substantivo latino ‘cor’, ‘cordis’ _‘coração’, sede da afetividade e da inteligência”. Cuidado: “sede” aí se lê com o primeiro “e” aberto (“séde”), e não fechado (“sêde”).
Salvo engano, os antigos julgavam que o coração fosse mesmo a sede da memória e da afetividade. Quando se descobriu que a memória é coisa do cérebro, já era tarde demais. Se non è vero, è bene trovato.
Pois bem. Lenine gostou da “novidade”, e a conversa prosseguiu. Logo em seguida, como bom nordestino, ele empregou a palavra “aperrear”, salvo engano para dizer que decorar o aperreia. Nem bem pronunciou o verbo “aperrear”, Lenine foi logo me perguntando: “Você sabe qual é a origem dessa palavra?” Eu disse que não conhecia e emendei: “1 a 1. Está dado o troco!” Gargalhada geral. E Lenine me disse que “aperrear” vem de “perro”, palavra que, diferentemente do que muita gente pensa, não é exclusiva do espanhol. “Perro” significa “cachorro”, nas duas línguas. Perros (cães) ferozes foram muito utilizados por colonizadores para intimidarem e massacrarem os nativos.
No “Houaiss”, o primeiro significado que se atribui a “aperrear” (datado de 1562) é “fazer perseguir por perros, por cães”. Bem, daí para chegar ao sentido que o verbo tem hoje no seu largo uso, sobretudo no Nordeste, é um pulo.
A etimologia, que nada mais é do que o estudo da origem e da evolução das palavras, é fundamental para conhecermos muito mais do que a origem e a evolução das palavras; é fundamental para conhecermos a nossa história, a história da humanidade, as suas diversas realidades e modos de pensar, de agir etc.
É por isso que adoro consultar dicionários, sobretudo os de papel. Gosto mais ainda quando esqueço qual foi a palavra que me levou ao dicionário e acabo me perdendo na leitura de tudo o que se diz sobre as palavras que encontro pelo caminho. Isso faz um bem danado à alma, ao espírito, ao coração. É isso.