Há um conceito novo na praça. Muniz Sodré, em belo artigo na FSP, conta-nos: “A distopia televisiva Years and Years (HBO), onde o mundo parece posto de cabeça para baixo, é amostra curiosa de um fenômeno ainda em busca de interpretação, que escolhemos designar como sociedade incivil”. Tempos de raiva, de anti-intelectualismo e quejandos.
Sigo com Muniz. Democracia não é conceito de poucas palavras. Duas, porém, como liberdade de expressão e civilismo (negociação pública de diferenças, cooperação, solidariedade, discernimento crítico e amizade cívica ou “phylia” – por ex, quem pode ser ministro do STF? Como se cobram coisas de autoridades?) compõem a ideia que o senso comum faz do funcionamento democrático da vida social.
Seria possível acrescentar a elas a palavra “comunicação”?
Em meio à notável expansão tecnológica, é crescente o déficit humano de compreensão mútua. Embalado pela imensa liberação expressiva propiciada pela rede eletrônica, o senso comum abandona-se ao êxtase da fala instantânea, ou seja, à ação biológica e mecânica do aparelho fonador, típica do psitacismo (fala do papagaio) ou do robô.
Enquanto isso, a hegemonia do capitalismo financeiro, da cultura algorítmica e do biopoder tecnológico sufoca a sociedade civil, criando um vácuo institucional.
É isso que dá margem à emergência da sociedade incivil, um ordenamento humano regido por tecnologias de comunicação e solidário à desestabilização das formas consensuais de representação do mundo.
Correto o texto de Muniz. Um bom exemplo dessa incivilidade foi o tuíte do ex-senador Cristovam Buarque sobre cláusulas pétreas, que bem demonstra o buraco em que estamos metidos: “Perguntas brasileiras: e se nossa primeira Constituição tivesse colocado a propriedade de escravos como cláusula pétrea, por sua importância fundamental na economia da época?”
Sim, ele postou isso. Mas não é o primeiro e nem o único. Grupos de WhatsApp – as novas células terroristas das neocavernas – disseminam esse tipo de asneira ofensiva. Não me surpreende que Cristovam não tenha se reelegido. Manchou sua história como professor. Que feio. A resposta ao ex-senador veio fulminante, pela voz do advogado Silvio Almeida: “Senador, sinto-me, como negro que sou, profundamente ofendido com sua comparação ridícula, sem sentido e desrespeitosa. O senhor tornou-se um homem triste e vulgar. Que a história trate de colocá-lo em seu devido lugar”.
Eis uma boa amostra destes tempos de incivilidade, em que um professor, ex-senador, ex-governador, diz uma barbaridade destas. Ele não deve ter amigos ou alguém em casa que o aconselhe.
Para Cristovam Buarque e pessoas que pensam como ele, vai um trecho de Rei Lear, de Shakespeare: “Tu não devias ter ficado velho antes de ter ficado sábio”.
O terraplanismo venceu. O anti-intelectualismo venceu. Bom, para um país em que os alunos já não levam livros para aula e ficam conferindo o que o professor diz revirando a Wikipédia, o que mais pode nos surpreender? Ninguém se operaria com um médico que estudou por livros do tipo “cirurgia cardíaca mastigada”, pois não? Mas no direito (ou na comunicação e outros ramos) tudo pode. Livros resumidinhos, mastigados. Viva o macete. Depois dá nisso que estamos vivendo.