No dia 16 de janeiro de 1991 me reuni com amigos para ver televisão em torno de uma gigantesca Sony Trinitron de 32 polegadas. Havia uísque, que era o que se bebia na época, refrigerantes e água de coco. Havia também uma sensação que não sabíamos definir. Estávamos curiosos e tensos, conscientes de estarmos vivendo um momento histórico, uma espécie de angústia por antecipação.
Os repórteres da CNN falavam diretamente da cobertura de um hotel em Bagdá, reportando os primeiros ataques aéreos dos Estados Unidos e de seus aliados contra o Iraque. Era a Operação Tempestade no Deserto, uma resposta à invasão do Kuwait pelo exército iraquiano alguns meses antes (suas consequências se estendem até os nossos dias). Nunca antes uma guerra havia sido transmitida ao vivo, em tempo real, e não tínhamos certeza nem do que iríamos ver, nem de como deveríamos nos comportar: era o.k. servir os salgadinhos?
Hoje aquelas imagens fazem parte do nosso inconsciente coletivo – a noite verde cortada pelas bombas, os foguetes antiaéreos traçando curvas no céu como fogos de artifício macabros. Mais tarde, um dos repórteres lembrou que, antes mesmo das primeiras explosões, todos os cachorros da cidade começaram a latir.
Era aflitivo saber, do nosso conforto em Ipanema, que aquilo estava acontecendo de verdade, naquele instante, numa outra parte do planeta – nada “estava feito”, ou pronto, numa gaveta imutável do passado. Em tese alguém, em algum lugar, ainda poderia mudar o curso dos acontecimentos, para evitar que pessoas que estavam vivas quando ligamos a televisão tivessem sido varridas da face da Terra antes que precisássemos repor o gelo nos copos.
Depois de certo tempo, porém, as imagens revelaram-se também profundamente monótonas, como um videogame escuro, embaçado e não interativo – e a conversa tomou outros rumos, porque a vida é pequena e é perto.
Desde então, nunca mais houve um dia sem guerra.
De acordo com a tradição judaica, começou ontem o ano de 5784. É impossível, neste momento, encontrar qualquer sombra do otimismo que normalmente acompanha a virada de um calendário.
O Oriente Médio nunca passou por um momento mais sombrio, nem mesmo durante as Cruzadas, quando a matança, afinal, era artesanal, e não punha a Terra inteira em risco.
Não dá para imaginar que, tantos séculos depois, os destinos de milhões de pessoas ainda se encontrem nas mãos de uma dúzia de homens igualmente sanguinários, e igualmente despreparados para liderar.
Israel tem um governo assassino que só raciocina – se é que raciocina – em termos de guerra, e se confronta com um regime ainda mais obtuso e deletério em Teerã; mas quem está comemorando o ataque iraniano nas redes sociais não conhece História, e não faz ideia do que é viver numa teocracia islâmica.
Atravessar o ano de 5783 foi catastrófico emocionalmente, mesmo (e talvez sobretudo) para quem vive em 2024.
Israel pode ter dizimado o Hamas e o Hezbollah, mas a principal vítima da sua ferocidade é aquela parte da consciência comum da diáspora judaica que imaginava uma democracia digna do nome, um país justo e evoluído que saberia se portar mesmo diante das piores adversidades.
Está sendo duro conviver simultaneamente com o fim dessa ilusão, com a imensa ferida do 7 de Outubro e com a constatação de que o ódio aos judeus continua não só firme e forte, como saiu de vez do armário e virou tendência global. (Cora Rónai/O Globo)