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Justiça absolve escritor acusado de dano moral pelos pais de uma das vítimas do incêndio na boate Kiss

Obra ficcional de Lauro Trevisan, 84 anos, foi amparada pela liberdade de expressão. (Foto: Reprodução/Facebook)

A 10ª Vara Cível do TJ (Tribunal de Justiça) do Rio Grande do Sul isentou o escritor gaúcho Lauro Trevisan, 84 anos, de indenizar em R$ 100 mil, por dano moral, os pais de uma jovem que morta junto com outras 241 pessoas no incêndio da boate Kiss. O incidente ocorreu em 27 de janeiro de 2013 na cidade de Santa Maria.

No processo, o casal alegou que o livro ficcional “Kiss – Uma Porta para o Céu”, de autoria de Trevisan, aumentou o sofrimento da família. A editora responsável pelas publicações do autor também foi absolvida e está liberada para, se quiser, vender exemplares da obra, incluindo novas edições.

O relator do recurso ao TJ-RS, desembargador Marcelo Cezar Müller, não viu ato ilícito nem excessos na conduta dos réus. Tal como ocorreu na primeira instância, o entendimento foi de que escritor e editora agiram ao abrigo da liberdade de imprensa quando publicaram o livro.

Ele embasou a sua decisão no fato de que a livre manifestação das atividades intelectuais, artísticas, científicas e de comunicação é assegurada pela Constituição Federal brasileira. “Desse modo, a liberdade de expressão, quando exercida sem abusos ou excessos, não pode sofrer censura nem dá ensejo à responsabilização civil”, sublinhou.

“O valor de uma sociedade livre foi alvo de determinação expressa como sendo um dos objetivos da República (CF, art. 3º, I) e pressupõe, certamente, o respeito ao direito de expressão”, anotou no acórdão, negando a apelação e confirmando os exatos fundamentos da sentença.

Os pais

Na ação inicial indenizatória, os pais da vítima se declararam chocados ao tomar contato com determinados trechos de “Kiss – Uma Porta para o Céu, a ponto de ficarem desestruturados psicologicamente, necessitando de tratamento.

Uma das passagens em questão levanta, segundo eles, a hipótese de que as vítimas foram levadas com vida para o local reservado à identificação dos corpos. Também acusaram o escritor e a editora de agirem “de forma oportunista e prematura”, exigindo a punição financeira.

O réu (cujo nome real é Eusébio Laurentino Trevisan) alegou ter escrito uma “obra de autoajuda com o objetivo de acalmar a angústia dos familiares das vítimas”. Ele publicou o livro dois meses após a tragédia “justamente para aplacar, naquele momento, a dor e o sofrimento deles”.

Ele acrescentou que os trechos destacados pelos autores devem ser analisados no contexto da obra, e não de forma isolada: “Afinal, na contracapa, foi dito que seriam usadas parábolas e alegorias para relatar história por meio de de personagens e acontecimentos simbólicos”.

Ao ser citada, a editora frisou que é responsável apenas pela impressão, publicação e divulgação da obra literária, sem relação com o seu conteúdo. Logo, não pode inibir uso de figuras de linguagem nem proibir citações fictícias e espirituais, utilizadas sob total responsabilidade do escritor. “Não há citação do nome das vítimas ou dos seus familiares, o que inviabiliza reparação à honra ou à imagem”, ressaltou.

Primeira instância

A 3ª Vara Cível da Comarca de Santa Maria havia julgado improcedente a ação indenizatória intentada pelo casal, por entender que o direito à liberdade de expressão (artigo 5º), exercido pelos réus, não violou intimidade, vida privada, honra ou imagem dos autores), assegurados na Carta Magna. Com isso, não se poderia falar em pagamento de indenização por danos morais nem a retirada do livro de circulação.

O juiz Michel Martins Arjona seguiu na mesma linha da defesa de Trevisan, de que o livro se valeu de muitas parábolas e alegorias, ferramentas empregadas frequentemente em textos religiosos, com o objetivo usar a fantasia e a espiritualidade como meio de explorar a realidade. “A obra apenas trouxe mensagens que proporcionam uma análise espiritual e acalentadora dos fatos ocorridos, o que condiz com o gênero da autoajuda, pelo qual o autor é reconhecido no mercado editorial”.

“Ademais, destaca-se que a obra não se utiliza de nomes ou imagens das vítimas ou familiares, nem de referências que direcionem os trechos impugnados diretamente aos parentes das vítimas, de modo que não se verifica na obra a alegada lesão à imagem ou nome de qualquer pessoa”, complementou o magistrado.

Ainda segundo Arjona, o laudo da perícia médica, em conjunto com as demais provas, não permite concluir que a leitura de trechos do livro se constituiu em causa exclusiva de dor, sofrimento e abalo psicológico dos autores da ação indenizatória: “Deve-se considerar que ambos encontravam-se em evidente elaboração da perda precoce da filha, ocorrida dois meses antes da publicação do livro, não sendo possível distinguir os sintomas oriundos do luto natural dos decorrentes da leitura da obra”.

(Marcello Campos)

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