A incapacidade de uma pessoa para os atos da vida civil é questão fática, não jurídica. Logo, se materialmente comprovada, macula com vício insanável todo e qualquer contrato firmado com instituição financeira. Com base nesse entendimento, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) declarou nulos todos os empréstimos tomados junto a quatro bancos, no Litoral Norte, por uma mulher com problemas psicológicos.
Além de anular o negócio jurídico, as instituições financeiras (Votorantim, Cruzeiro do Sul, Bonsucesso e Bradesco Financiamento) foram condenadas a devolver, em dobro, os valores indevidamente descontados dos benefícios da autora – auxílio-invalidez e pensão por morte.
As pessoas absolutamente incapazes não podem, sozinhas, celebrar negócio jurídico, sob pena de nulidade do contrato, como prevê o artigo 166, inciso I, do Código Civil.
A mulher havia ajuizado a ação por meio da Defensoria Pública, que levou em consideração o fato de que a autora ser conhecida por perambular à toa pela cidade de Tramandaí, comportando-se de forma agressiva e despindo-se em locais públicos, além de depredar patrimônio particular quando tomada por surtos de esquizofrenia paranoide e uso de crack – ela está internada em hospital psiquiátrico e interditada judicialmente.
Citados pela 1ª Vara Cível da Comarca, os quatro réus apresentaram contestação. De relevante, no mérito, disseram que não praticaram qualquer ato ilícito, pois os contratos celebrados entre as partes estão de acordo com o ordenamento jurídico.
Além disso, os contratos foram firmados, e os créditos liberados, porque houve autorização do órgão responsável pelo benefício – o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
Sentença improcedente
A juíza Laura Ullmann López julgou improcedente a ação declaratória, tomando, como razões de decidir, a íntegra do parecer do representante do Ministério Público em atuação na 1ª Vara Cível, que ‘‘esgotou a matéria em discussão’’, anotou na sentença.
Conforme observou o signatário do parecer, a autora só foi interditada judicialmente, em função de sua incapacidade ‘‘pública e notória’’, em 2015 – portanto, após o ajuizamento da ação que contesta a legalidade dos contratos de empréstimos bancários. A promotoria frisou que os atos jurídicos anteriores à interdição judicial podem anulados quando reconhecida a incapacidade.
No entanto, não basta apenas o ajuizamento de ação específica, mas a comprovação de que existia a incapacidade alegada antes da sentença de interdição – o que não ocorreu no caso dos autos.
‘‘Desta forma (…), não há comprovação do início da incapacidade civil da favorecida [autora da ação], senão a data da sentença que decretou a interdição judicial da mesma (…). Assim, os pactos havidos entre as partes não se encontram, portanto, eivados de nulidade, já que à época de sua celebração não foi demonstrado que a requerente era absolutamente incapaz para os atos da vida civil’’, concluiu o agente do Ministério Público (MP) no parecer. Da sentença, a Defensoria interpôs apelação cível do TJ-RS.
Apelação provida
A desembargadora Ana Paula Dalbosco, relatora da apelação na 23ª Câmara Cível do TJ-RS, esclareceu que a nulidade dos negócios jurídicos não passa apenas pela verificação da data da assinatura dos contratos em comparação com a data da sentença de interdição, pois a aferição de incapacidade é matéria fática, não jurídica.
Desse modo, se a firmatária não possuía capacidade, o contrato será nulo de pleno direito, independentemente da ciência da instituição financeira.
‘‘No caso dos autos, as provas de que a parte autora não possuía capacidade de entendimento dos termos dos contratos de empréstimos bancários que firmou são fartos. Assim, não há dúvida de que a autora, quando da celebração dos negócios jurídicos, não se encontrava em plena faculdade mental, padecendo de capacidade para firmar qualquer negócio jurídico sem a presença de representante/assistente’’, registrou no voto.
Por fim, a relatora observou que os bancos não terão qualquer prejuízo, já que, com a anulação dos contratos, haverá a devolução de todos os valores percebidos pelos contratantes.
‘‘Justamente, em razão disso – ausência de qualquer prejuízo financeiro –, causa espécie a esta julgadora a insistência dos bancos réus, diante da farta [prova] produzida nos autos, em defender a idoneidade da contratação, seja na seara administrativa, seja judicialmente, tal conduta vai de encontro ao princípio da boa-fé que regula toda relação jurídica’’, lamentou a magistrada.
(Marcello Campos, com informações do Conjur)