A prisão do general Braga Netto está desafiando um dos mais sólidos pilares da formação militar: a camaradagem. Com o avançar das investigações, a tradição que liga gerações desde que chegam na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), a porta de entrada no Exército para a formação dos oficiais, começou a ficar de lado. A esta altura ninguém é irmão, compadre ou parente de ninguém. E algumas das denominações usadas por colegas tão próximos que se tornam parte da família foram substituídas pelo discreto distanciamento na medida em que se consolida o cenário de salve-se quem puder.
Foi por acreditar que valores de tempos normais ainda permaneceriam e o amparariam que Braga Netto, o primeiro general de quatro estrelas a ser preso depois da redemocratização, se enrolou mais do que já estava. Afinal, ninguém quer ser o segundo, o terceiro… e quem pode correr, corre ao perceber que “deu ruim”. “Se vamos segurar alguém, vou segurar a mim mesmo”.
O pesquisador e diretor da Escola de Ciências Sociais (FGV CPDOC) e da Escola de Relações Internacionais (FGV RI) da Fundação Getulio Vargas, Celso Castro, em seu livro “O espírito militar, um antropólogo na caserna” (Editora Zahar), que ele atualizou depois da chegada de Jair Bolsonaro à Presidência, explica como se constroem esses conceitos que os militares levam pela vida, partindo do princípio que “tornar-se militar envolve também, e necessariamente, a invenção do civil”.
Castro descreve as “interações dentro de um mesmo ‘circulo social’ e relata as pressões que os jovens sofrem durante o curso. Quando se formam, passam a ser a “turma” identificada pelos dois últimos números da última década e o ano. Braga Netto é da “Turma de 78”. O pai de Mauro Cid, Mauro César Lourena Cid, também general reformado de quatro estrelas, é da “Turma de 77″, a mesma de Bolsonaro.
O indiciamento de “Cid pai” no caso da venda das joias que foram recebidas pelo ex-presidente – revelado em primeira mão pelo Estadão – foi decisivo para que o filho, o tenente-coronel, concordasse com a delação premiada.
Passou a estar em risco não só o nome da família, considerada uma das mais tradicionais do Exército, mas a crescente convicção de que a prisão de Braga Netto abriu uma porta pela qual ninguém quer passar. Se atravessar e o militar for julgado culpado, ele perderá muito mais do que uma vida dedicada à Força. Ficará sem o posto, a patente e será tratado como “indigno” para o oficialato. Primeiro, os próximos foram evitando as conversas. Por fim, preferiram deixar de lado a velha camaradagem.
O novo cenário, reforçado pela preocupação de separar indivíduos que podem ter cometido crimes da imagem da Força, foi sendo notado por militares que também observaram os movimentos do delator nos depoimentos. O tenente-coronel passou a retificar informações que já havia passado à PF e admitiu que Braga Netto vinha pressionando, principalmente o pai, para que revelasse o que vinha sendo dito.
Durante quatro anos, o ajudante de ordens de Bolsonaro reinou no Palácio do Planalto. Temido, paparicado e admirado pelos que davam como certa sua ascensão até se tornar general, agora é tido como um colega ambicioso e “sem noção”. É o novo clima entre os envolvidos na tentativa de golpe do 8 de janeiro e os que ainda não estão, mas podem vir a estar. É o cenário do salve-se quem puder e “corra que a polícia vem aí”. (Monica Gugliano/Estadão Conteúdo)