Ululante é algo tão óbvio que não deveria merecer contestação. De amplo domínio, claro, irrefutável, conforme Nelson Rodrigues popularizou em 1950, através do livro “O óbvio ululante”. Mas ululante também significa alguém que grita, berra e emite sons de lamento. Pelé foi o nosso maior jogador de futebol: óbvio ululante; O Brasil é um país injusto e desigual: óbvio ululante; O Brasil precisa fazer a reforma administrativa: óbvio ululante… Nem todas as obviedades, porém, pelo simples fato de serem evidentes, são fáceis de serem enfrentadas. É preciso transpor, no caso de políticas públicas, uma engenhosa trama de resistências ideológicas, legais, culturais e fisiológicas que dificultam, senão impedem, a implementação das mudanças, mesmo aquelas tidas e havidas como absolutamente necessárias, e óbvias. É o caso, agora, do debate envolvendo o corte de despesas no atual Governo. A reforma administrativa é a parte imprescindível para o equilíbrio das contas públicas, seguindo a mesma lógica de uma empresa que precisa ajustar o seu caixa ou de uma dona de casa que faz as contas antes de ir ao supermercado. Não há milagre, tampouco atalhos para resolver esse imenso desafio.
No Brasil, ir às razões últimas dos nossos problemas é um exercício difícil. Para cada problema estrutural, uma centena de causas. Somos, em grande medida, cuidadosamente programados para não dar certo. Isso abrange desde a nossa cultura patrimonialista, baixo nível educacional, rapinagem endêmica do Erário e um ecossistema com excessivo grau de judicialização e burocratização que emperram o funcionamento da economia. São defeitos que se retroalimentam, sendo difícil mexer em um deles sem que o todo reaja em sentido contrário. Até por isso a aprovação, mesmo que capenga da reforma tributária, merece ser saudada. Entretanto, é necessário que sua irmã siamesa, a reforma administrativa, também seja encaminhada. As razões para tanto abundam, como é o caso apontado pelo CLP – Centro de Liderança Pública, informando haver mais de 25.000 funcionários públicos recebendo acima do teto do funcionalismo.
Essa elite contrasta com a esmagadora maioria que recebe abaixo de R$ 5.000,00, espelhando, também no Governo, o quadro de desigualdade observado na sociedade de forma geral. Isoladamente, a correção dessa anomalia não resolve o gargalo dos gastos públicos, mas confere um sentido de justiça que poderia galvanizar apoios à reforma, já que o tema, lamentavelmente, ainda encontra baixa repercussão no Congresso, quer por interesses fisiológicos em parasitar uma máquina governamental inchada, quer pelo corporativismo impregnado em determinadas categorias do serviço público. Cabe, então, às demais forças da República, dentre elas os formadores de opinião, trazer esse tema ao debate e escrutínio, uma vez ser uma demanda absolutamente inadiável.
Ter as contas equilibradas, torna-se ainda mais crítico diante da necessidade do País retomar a sua agenda de investimentos públicos. Ao que tudo indica, mesmo com méritos, dentre os quais equalizar a cobrança de impostos dos mais ricos, a reforma tributária, sozinha, será incapaz de resolver a questão do nosso déficit público. Isso não significa fazer uma reforma administrativa atabalhoada, até porque o País apresenta muitos setores ainda carentes de bons serviços públicos. Diante dos riscos apontados para os próximos anos, notadamente aqueles atrelados a questões geopolíticas com reflexos econômicos, fazer o dever de casa na questão das contas públicas é responsabilidade indelegável de nossas lideranças. Com a casa desarrumada, será muito mais complicado enfrentar os eventuais solavancos econômicos dos nossos parceiros comerciais, atender as enormes demandas sociais que merecem atenção e aumentar nossos níveis de investimento em infraestrutura, para ficar apenas nesses três exemplos. Sem fazer o dever de casa nas reformas, nosso País continuará a patinar sobre o fino gelo da instabilidade e das crises intermitentes que marcaram nossas últimas décadas.