Os eventos que tiram o sono do mundo no Oriente Médio, a questão climática, o aumento do sectarismo político e uma nova configuração geopolítica que remodela o planeta reclamam, como há muito não se via, o exercício pleno da mediação, da conciliação e da diplomacia. Em lugar disso, e não apenas nos grandes círculos do poder, mas nas relações pessoais mais ordinárias, prevalece, em larga medida, posições entrincheiradas em convicções pouco franqueadas à arte conciliatória. Nem mesmo a ONU, instância máxima da diplomacia mundial, tem conseguido encaminhar, a contento, assuntos vitais para o atual momento que vivemos, cujo exemplo mais eloquente é a incapacidade de impor um cessar fogo na guerra entre o grupo terrorista Hamas e Israel.
Após o advento do estado moderno, a convivência sempre precária entre os países foi obtida pela injunção de uma série de fatores, sendo a força econômica, notadamente após 1918, seu elemento mais definidor. Mas era preciso criar algum mecanismo que permitisse ao mundo evitar, via deliberação diplomática entre os diversos atores, que os horrores das duas grandes guerras mundiais ocorressem mais uma vez. O surgimento da tecnologia nuclear tornava ainda mais urgente essa nova concertação. Ocorre que um novo mapa geopolítico foi emergindo, especialmente com a ascensão da China e seus países satélites, confrontando a hegemonia americana, tornando cada vez menos possível uma atuação harmônica do Conselho de Segurança da ONU, responsável por autorizar o uso legítimo da força em caso de ameaças à paz, ruptura da paz ou atos de agressão. Os adventos da última guerra do Iraque e os recentíssimos eventos no Oriente Médio e na Ucrânia comprovam a inoperância da atual arquitetura.
Se parece mais difícil para a diplomacia agir num mundo fragmentado e em rápida transformação, não é diferente para a religião, em tese outro vetor de contenção da violência que sugere estar perdendo força diante do movimento geopolítico em curso. Aliás, a ideia de que a religião é uma força para a paz não se encaixa nos fatos de sua história, como oportunamente nos lembra o professor Steven Pinker. Além do Vaticano frequentemente falar ao vento, o sectarismo religioso, especialmente em suas grandes vertentes monoteístas, não abandonou seus deuses da guerra, cuja memória das outrora “guerras santas”, guarda poucos auspícios para um encaminhamento seguro das atuais contendas, muitas delas, justamente, ainda alimentadas por pendores messiânicos, derivados de interpretações ortodoxas dos livros sagrados.
Com a inoperância da racionalidade funcional da ONU e do constrangimento da fé enquanto elemento dissuasivo para as sempre presentes pulsões da morte que movem as lideranças globais, será preciso reconstruir um novo arcabouço institucional e moral capaz de operar como freio aos impulsos que confrontam a soberania do bem. Quem sabe, repousa na filosofia, através da racionalidade substantiva, prima-irmã do imperativo categórico de Kant, uma base moral humanista para sustentar os desafios de uma era que se prenuncia muito mais complexa e instável das que a antecederam.
Desse modo, a falência institucional e religiosa como anteparos à barbárie poderá abrir e ensejar um novo caminho, senão para o fim definitivo dos conflitos, mas como uma nova perspectiva a ser considerada em momentos de tensão como esse que vivemos. Não me parece mais suportável, à luz daquilo que fomos capazes de erigir enquanto engenho humano, que capitulemos, de modo preciso, naquilo que de mais terrível tem nos acometido, a violência injustificada e as mortes banalizadas. Enquanto o olhar de uma criança qualquer, destroçada por uma bomba ou aviltada por um terrorista não for capaz de causar mais nenhum sentimento moral, poderíamos dizer que falhamos enquanto humanos. Contudo, o humanismo, com o qual as pessoas podem preencher o vazio filosófico, pode ser capaz também de nutrir novas soluções para a paz e o entendimento no mundo, e isso é uma possibilidade real.