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Acredite: Brasileiro confunde sua mulher com um chapéu

O neurologista Oliver Sacks é um escritor famoso. (Foto: Reprodução)

O neurologista Oliver Sacks é um escritor famoso. Entre outros contos e livros, escreveu “O homem que confundiu sua esposa com um chapéu”. O Dr. P. era um músico que perdeu (embora apenas na esfera do visual) o emocional, o concreto, o pessoal, o “real”… Os exames clínicos eram normais. Só que ele confundia pessoas com coisas.

Sua doença: Erro de percepção. Ele afagava o topo de hidrantes e parquímetros pensando que eram cabeças de crianças; dirigia-se cordialmente aos puxadores esculpidos dos móveis e se espantava quando eles não respondiam.

Certo dia, ele também parecia ter decidido que o exame terminara, e começou a olhar em volta à procura de seu chapéu. Estendeu a mão e agarrou a cabeça de sua mulher, tentou erguê-la e tirá-la para pôr em sua cabeça. Ele confundira sua mulher com um chapéu! Ela olhava como se estivesse acostumada com coisas assim. Perguntado se aquilo não o incomodava, o Dr. P respondeu: Só quando erro.

Como explicar a singular incapacidade do dr. P. para interpretar, para avaliar uma luva como uma luva? Manifestamente neste caso ele não conseguia fazer um julgamento cognitivo, embora fosse fértil na produção de hipóteses cognitivas. Um julgamento é intuitivo, pessoal, abrangente e concreto – nós “vemos” como as coisas são em relação umas às outras e a si mesmas. Era precisamente essa disposição, esse estabelecimento de relações que faltava ao dr. P.

Pois o Dr. P é o “brasileiro médio”, que tem gravíssimos problemas de percepção. Confunde alhos com bugalhos. Mergulhado no senso comum, o habitante das redes sociais acredita em qualquer coisa publicada. Acredita até mesmo que a terra é plana, de nada adiantando que você lhe mostre uma fotografia da terra. Ele dirá que isso é montagem.

O brasileiro mediano comete um erro que na ciência chamamos de a navalha de Hume ou a violação da Lei de Hume. A lei de Hume proíbe que do “é” se deduza “o deve”. Na mediocridade do cotidiano deste personagem brasileiro médio, qualquer “é” já vira uma “deve”.

Para esse habitante que desdenha da política, a solução é sempre via senso comum. Política está ruim? É. Solução: a política deve ser extinta. Bingo. Há muita violência. É, isso é verdade. Solução: devemos arrumar licença para matar ou algo desse tipo.

O Dr.P brasileiro sempre tem respostas simples para problemas complexos. Por isso confunde a cabeça de alguém com um chapéu. E fala com os hidrantes. Incapaz de dizer que uma coisa pode não ser aquilo que parece ser.

Como diria o médico ao Dr. P, “ponha seus sapatos. Eles estão ali”. E o Dr. P: “mas já os pus”. – Não, você não os colocou, porque ainda está descalço, diz-lhe o médico. “Pare, Doutor, você está querendo me enganar”, redarguiria o Dr. P. “Os pés nem existem. E o que são sapatos”?

Ter gravíssimos problemas de percepção não incomoda o brasileiro médio? Não, responde o brasileiro médio. “Só quando erro”. Mas aí vem o busílis: como descobrir um erro no meio de tantos erros? Quando erra, acha que é o certo. Se alguém disser que o errado é certo, gente como o dr. P responderá: você está querendo me enganar.

De minha parte, valho-me de T S Eliot: numa terra de fugitivos, aquele que anda na direção contrária parece estar fugindo. Complicado tudo isso que escrevi? É. Se você não entendeu, é porque pode estar com graves problemas de percepção.

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