Terça-feira, 18 de março de 2025
Por Redação O Sul | 10 de junho de 2022
A Justiça de São Paulo autorizou um casal de mulheres a receber doação de material genético de um amigo para iniciar o tratamento de fertilização in vitro – técnica popularmente conhecida como “bebê de proveta”. A decisão afasta regra do Conselho Federal de Medicina (CFM) que exige que o doador seja anônimo.
Segundo advogados, é a primeira ordem judicial que se tem notícia a autorizar a quebra do sigilo da identidade e admitir a doação por pessoa do relacionamento do casal, mas que não seja parente dos interessados.
O alvo do litígio é a Resolução nº 2.294, editada em maio do ano passado pelo CFM. Pelo item 2 da seção IV da norma, “os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa”. O dispositivo abriu uma exceção para os casos em que o doador seja parente de até quarto grau de uma das pessoas do casal, desde que essa doação não incorra em consanguinidade.
Antes dessa regra, o Judiciário vinha derrubando a exigência de anonimato para os casos em que o doador era parente. Tanto que, segundo advogados, houve a mudança da norma pelo Conselho Federal de Medicina. Agora, a decisão da Justiça de São Paulo flexibiliza a obrigatoriedade em caso de doador que é do círculo de relacionamento do casal.
De 1992 até aqui, o CFM editou seis resoluções com normas para a utilização da técnica de reprodução assistida. A última foi a editada em maio do ano passado.
Na decisão liminar (tutela de urgência), a juíza Rosana Ferri, da 2ª Vara Cível Federal de São Paulo, considerou que não existe lei que proíba a realização do procedimento com a doação do material genético pelo amigo do casal.
De acordo com a magistrada, entender o contrário viola a garantia prevista na Constituição de que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (artigo 5º, inciso II).
“As determinações da resolução do CFM que se busca afastar têm por finalidade preservar a ética e resguardar o nascituro de eventuais futuras questões psicológicas. Apesar de louvável a intenção, entendo que não é possível concluir que tais problemas existirão, ainda mais na proporção de ensejar uma proibição por parte do órgão regulador, proibição essa desprovida de embasamento legal”, afirma a juíza.
Ela levou em conta ainda o fato de as mulheres estarem em faixa etária próxima aos 40 anos e, uma delas, com baixa reserva ovariana e diagnóstico de miomas em crescimento. “Aspectos que, somados, exigem que a gravidez seja levada a efeito com urgência sob pena de, com o passar do tempo, suas chances de engravidar sejam cada dia menores ou até mesmo inexistentes”, diz a magistrada.
Com a liminar, as mulheres e o doador podem dar início à coleta e análise dos gametas e a clínica de reprodução pode começar o tratamento para a fecundação. No caso, o casal optou pelo método em que uma delas fornece os óvulos e a outra engravida, conhecido como Recepção de Óvulos da Parceira (Ropa).
Segundo a advogada Ana Carolina Mendonça, que representou o casal no processo, pode haver tendência de flexibilização da regra do CFM caso outras ações passem a ser ajuizadas.
Para ela, não existe lógica no tratamento distinto feito pela resolução entre doações por parentes e não parentes. “Se o doador for um conhecido, amigo do casal, e houver arrependimento por ele, o máximo que vai acontecer é ter uma certidão de nascimento com duas mães e um pai”, afirma. Mas, se houver arrependimento por parte de doador da família, acrescenta a advogada, “vai haver confusão de parentalidade, o que é muito mais arriscado”.
O advogado Alexandre Ricco, do Menezes e Ricco Advogados, diz que essa é a primeira decisão que ele tem conhecimento e que pode ter um impacto muito positivo para englobar as novas realidades familiares. “Hoje existem diversos tipos de família e estamos evoluindo de forma muito constante. Decisões como essa quebram paradigmas. É o Judiciário atendendo de forma moderna em sinergia com os anseios da sociedade”, diz.
Ricco afirma que chegou a fazer uma consulta há alguns anos para um casal hétero. O homem era infértil e eles queriam utilizar material genético de um irmão ou primo próximo. Contudo, no fim, optaram por tentar mais um tratamento de fertilidade e desistiram de entrar com ação.
A juíza, para ele, embasou muito bem a decisão, uma vez que não existe lei que proíba a doação de amigos e, como diz a Constituição, ninguém tem obrigação de fazer senão em virtude de lei. Além disso, acrescenta, a urgência e o perigo da demora estão demonstrados no caso, que envolve mulheres em torno de 40 anos, faixa etária em que a possibilidade de gravidez pode ficar mais difícil. “A proibição no caso não faz sentido, se as pessoas envolvidas estão abrindo mão do anonimato.” As informações são do jornal Valor Econômico.