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Por Redação O Sul | 9 de novembro de 2020
A acusação inédita e sem provas contra o sistema eleitoral americano que Donald Trump fez desde a campanha é o maior teste já enfrentado pela democracia americana. Embora a participação recorde em meio à pandemia seja um sinal de vigor e confiança dos eleitores, as alegações do republicano podem, segundo especialistas, deixar feridas, abalando regras não escritas do pacto político.
E os resultados apertados e contestados escancaram idiossincrasias do sistema eleitoral que foram desenhadas há mais de dois séculos, na Constituição de 1787, mas que hoje parecem anacrônicas diante da comparação com outras democracias ocidentais — como a escolha indireta do presidente pelo Colégio Eleitoral ou a autonomia local na definição das regras de votação, apuração e proclamação dos resultados.
Na imensa maioria das democracias, é escolhido presidente ou lidera o governo, no caso do parlamentarismo, quem tiver a maior parte dos votos da população, em um sistema gerido por leis nacionais e instituições centralizadas. Com a tecnologia, ainda que o voto não seja eletrônico, é possível saber o vencedor em poucas horas. Mas não nos EUA.
No país que se formou com a união de 13 Estados que queriam manter sua autonomia e temiam o controle da federação pelas unidades mais populosas, o Colégio Eleitoral foi a saída de consenso na época. Do mesmo modo, os governos locais têm autonomia para determinas as leis eleitorais. Com a tradição jurídica inglesa, onde a jurisprudência tem mais peso que leis muito detalhadas, a eleição se baseia em grande parte em normas não escritas, seguidas por partidos e candidatos dentro de um certo nível mínimo de consenso.
O sistema eleitoral já era questionado porque, por duas vezes desde 2000, o presidente eleito pelo Colégio Eleitoral não teve a maioria dos votos populares — George W. Bush e o próprio Trump em 2016, ambos republicanos. Mas o atual presidente elevou a tensão em torno do sistema a um nível inédito.
“Nosso sistema eleitoral foi formado no início do século 18. Ele não foi desenhado para as democracias contemporâneas, era algo que fazia sentido naquele momento, bem como que cada Estado definisse suas regras. Agora Trump acusou de fraude normas que sempre foram respeitadas, como prazo maior para receber votos pelo correio desde que postados até o dia da eleição. Isso não é fraude, são normas aceitas pelo povo e pelos partidos de determinado Estado ou condado”, disse Josh Pasek, professor de Comunicação e Mídia da Universidade de Michigan. “Tudo aqui é descentralizado, atendendo às realidades de cada localidade.”
Pasek afirma que, apesar de o sistema funcionar — prova disso é o maior engajamento da população na eleição em décadas —, não significa que ele seja perfeito e que não precise de reformas. Além disso, a lógica por trás do Colégio Eleitoral perde apelo entre os mais jovens. Isso só faz ecoar mais as críticas de Trump nos EUA, onde poucos dos 50 Estados podem ser considerados sem tendência política consolidada — por questões demográficas e econômicas, sabe-se de antemão a inclinação de cada localidade.
Voto antecipado recorde
O cenário da pandemia, no qual um recorde de mais de 100 milhões de americanos votaram antecipadamente para evitar aglomerações, dos quais mais de 65 milhões pelo correio, foi usado por Trump para disseminar a alegação de manipulação no processo eleitoral.
Scott Mainwaring, professor da Universidade Notre Dame, em Indiana, afirma que, apesar de o sistema funcionar para a lógica americana de Estados unidos porém autônomos, alguns pontos estão em debate há tempos. Ele lembra que, nos anos 1960, por pouco não se aprovou o fim do Colégio Eleitoral. Hoje, com a polarização política extrema, acredita que qualquer mudança nessa direção é impossível.
Parte das alegações de Trump têm origem em normas não escritas. Nos EUA, por exemplo, um gestor de um determinado condado (a divisão administrativa dos Estados) pode criar um sistema de votos “drive-thru” para facilitar o voto na pandemia sem que seja necessária uma lei. O que sempre foi aceito, dentro de um acordo de cavalheiros, agora é posto à prova.
“Temos um sistema que sofre há anos de falta de investimento, então temos inveja do sistema eleitoral brasileiro, muito ágil. Há uma grande frustração com nosso sistema eleitoral, mas falta um projeto para reformá-lo. Porém, com a polarização, isso não avança, porque é baseado em uma desconfiança histórica do governo federal”, afirma Brian Winter, vice-presidente de Políticas do centro de estudos American Society/Council of the Americas, em Nova York. “Muito da eleição é feito por tradição, não por lei, e este questionamento por parte do Trump é muito ruim. Ao menos 25% dos americanos acreditarão que houve fraude, que há um presidente ilegítimo. É uma triste novidade para nós.”