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Ao admitir ter conversado sobre estado de sítio, Bolsonaro prejudica sua defesa

"Mas as Forças Armadas não são um poder constituído. Elas compõem um órgão burocrático do Estado", diz especialista. (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

A admissão do ex-presidente Jair Bolsonaro de que discutiu o estado de sítio com militares em 2022 prejudica sua defesa em processo envolvendo a trama golpista, na interpretação de especialistas. No dia 21 de novembro, o ex-mandatário foi indiciado pela Polícia Federal na apuração sobre tentativa de golpe. Segundo o relatório policial, ele planejou, atuou e “teve domínio de forma direta e efetiva dos atos executórios” contra a democracia.

Uma semana após o indiciamento, Bolsonaro admitiu, durante entrevista à revista Oeste, ter discutido o estado de sítio e o estado de defesa com militares após as eleições de 2022. “Eu discuti, sim, conversei, não foi uma discussão acalorada”, afirmou, citando que um dos assuntos debatidos foi o artigo 142 da Constituição, que aborda as atribuições das Forças Armadas.

Ele já havia falado sobre o tema em outras ocasiões, mas de forma menos explícita, como em manifestação de fevereiro na avenida Paulista, quando indicou saber da existência de minutas de decreto para anular a eleição do presidente Lula.

Apesar da admissão, o ex-presidente nega ter participado de uma trama golpista. Segundo ele, as discussões foram respaldadas pela Constituição, o que é rebatido por especialistas.

Segundo Danilo Pereira Lima, professor de direito constitucional do Centro Universitário Claretiano e doutor em direito público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), as falas de Bolsonaro sobre a discussão com militares indicam sua intenção golpista e confirmam o conjunto probatório sobre a trama apresentado pela PF.

Lima afirma que o ex-presidente faz uso de “uma leitura completamente equivocada” do artigo 142 da Constituição, que diz que as Forças Armadas “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos Poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Na interpretação deturpada que costuma ser propagada por uma ala do bolsonarismo, as Forças teriam um Poder moderador, ou seja, poderiam interferir em situações de conflito entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário.

“Mas as Forças Armadas não são um poder constituído. Elas compõem um órgão burocrático do Estado”, diz Lima. “Em qualquer situação de crise entre os Poderes, a tensão tem que ser resolvida pelos agentes civis. No regime constitucional democrático, o poder militar está sempre subordinado ao poder civil.”

O especialista afirma que não havia na ocasião justificativas plausíveis para acionar o estado de defesa ou de sítio, que é o “remédio mais amargo que a Constituição oferece para resolver uma crise gravíssima no país”.

Liberdades individuais

O estado de defesa restringe liberdades individuais e é acionado para preservar a ordem pública ou a paz social ameaçadas por graves crises. Ainda mais extremo, o estado de sítio é previsto em casos de comoção de repercussão nacional ou guerra, por exemplo. Para ser decretado, precisa de autorização do Congresso Nacional.

Para Adriana Cecilio, mestre em direito constitucional e professora da Universidade Nove de Julho, Bolsonaro se autoincriminou ao admitir ter conversado sobre o estado de sítio.

Ela afirma que o ex-mandatário, ao tomar ciência de uma discussão sobre o tema sem justificativa cabível nos termos da lei, tinha o dever de agir contra a ação. Isso porque ele era, enquanto presidente, chefe supremo das Forças Armadas e, por isso, respondia pelos atos da instituição.

A professora também aponta uma deturpação do artigo 142 da Carta Magna para dar ar de legalidade ao golpe.

Segundo ela, a análise dos anais da Constituinte de 1988 aponta que, ao contrário da interpretação utilizada por bolsonaristas, os parlamentares da época escreveram o texto para “fechar as portas” ao alegado poder moderador das Forças Armadas.

“É possível depreender dos debates, sem qualquer sombra de dúvida, que o texto foi aprovado precisamente com os termos ‘Poderes constitucionais’ com o intuito de estabelecer que as Forças Armadas estão submetidas aos três Poderes, ao controle do poder civil”, escreveu a professora em artigo sobre o tema.

“A teoria da ‘tutela militar’, da concepção das Forças Armadas como um Poder moderador, como vimos, foi objeto de debate e essa possibilidade foi debelada pelo constituinte originário. A Constituição não outorga tal poder às Forças Armadas”, continuou.

Em 2020, a Câmara dos Deputados emitiu parecer afirmando que o artigo 142 não autoriza uma intervenção militar para “restaurar a ordem” e mediar conflitos entre os Poderes. As informações são do jornal Folha de S. Paulo.

 

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