Incólume e plena, de conjunto preto e cabelos brancos e volumosos, Fernanda Montenegro desafia o tempo e volta a sustentar o poder de sua voz em uma nova estreia.
O texto que, lido se converte em pouco mais de uma hora, perpassa pela relação entre um dos maiores ícones do feminismo e um dos mais importantes bastiões do existencialismo.
O tempo todo sentada em uma cadeira, a icônica atriz brasileira usa apenas como recursos auditivos o bater da mão na madeira da mesa e sua própria voz. Ao copo de água posicionado no canto da mesa, não dedicou um gole sequer durante toda a travessia da história de romance e filosofia.
A estreia da peça, na última quinta-feira (20), lotou o saguão e o teatro do Sesc 14 Bis, antiga sede da Fecomércio, no centro de São Paulo. Na plateia, mulheres que são referências para várias gerações, como Bruna Lombardi, de 71 anos, Monica Salmaso, de 53, Maria Prata, de 44 e Marina Ruy Barbosa, de 28.
A voz inconfundível de Fernanda Montenegro não falha um instante sequer, embora demonstre discretamente os impactos da idade. As páginas de leitura são atravessadas com a cadência que parece ter sido imposta por Simone de Beauvoir ao escrever sobre o romance com Jean-Paul Satre.
O texto passa pelo direito da mulher em escolher ser mãe – ou não –, entre outras bandeiras sustentadas pela professora francesa que virou ícone do feminismo em todo o mundo no século XX. Coincidentemente ou não, a passagem dá uma contribuição sutil ao debate travado nos últimos dias sobre a criminalização do aborto no Brasil em gestações avançadas.
“O tempo é irrealizável”, reproduz Fernanda em uma das passagens do texto, que tem como fio condutor a juventude e a velhice. “Não ficamos velhos num instante, mas a velhice nos chega como uma desgraça. Eu não sou escrava do meu passado, o que eu sempre quis foi comunicar da maneira mais direta o sabor da minha vida”, declama a atriz em outro trecho.
De pé, a plateia entregou à imortal da ABL (Academia Brasileira de Letras) quase dez minutos de aplausos, entre três movimentos das cortinas abrindo e fechando. De pé, Fernanda agradeceu aos convidados, mostrando total domínio do corpo e da alma que já se tornaram patrimônio cultural do Brasil.