Vamos imaginar algumas situações familiares cotidianas. A criança tenta calçar os sapatos sozinha, troca o pé, erra, demora. O pai, com pressa, faz ele mesmo para não se atrasarem. Ou o menino começa a comer sozinho. Diante da sujeira, a mãe prefere dar na colher. A menina escolhe uma roupa esquisita para o passeio. Os pais estranham e fazem com que vista outra coisa.
Isso acontece na maioria das famílias e aconteceu ainda mais durante a pandemia, quando as crianças estavam cercadas pelos seus principais cuidadores de forma muito mais constante. O que poucos percebem é o prejuízo para a conquista da independência que esse tipo de ação causa.
Os especialistas dizem que é hora de recuperar o tempo perdido e auxiliar as crianças a ganhar autonomia, que tem impacto direto na saúde mental e no desenvolvimento neurológico.
A neuropsicopedagoga Renata Aguilar observou até retrocesso em alguns casos em razão da falta de escola e convívio: “A pandemia impactou muito no desenvolvimento da independência. A escola promovia isso: a criança carregava a lancheirinha, abria o próprio suco, colocava o canudinho sozinha, buscava o estojo, ajudava o professor. Em casa, os cuidadores começaram a fazer tudo por ela”.
A privação da interação com outras crianças foi outro fator determinante. “Nosso cérebro tem um neurônio descoberto recentemente que é o neurônio espelho: eu aprendo vendo o outro. A criança pequena, ao ver os amiguinhos indo ao banheiro e usando o vaso, lavando a mãozinha, entende que aquele é um modelo para poder seguir. O cuidador é um modelo diferente, porque faz tudo muito rápido. Se o amiguinho está colocando o sapato, ele tem as mesmas dificuldades e uma criança ajuda a outra”, explica Aguilar.
Segundo a neuropsicopedagoga, quando os cuidadores fazem tudo pela criança, ela se acomoda.
“Isso afeta também a autoestima. A independência depende do suporte do adulto porque quando os pais fazem por ela, parece que não é capaz. E ela é capaz sim, respeitando a faixa etária. Dar liberdade para fazer, errar, acertar… O erro é normal e precisa acontecer. Isso desenvolve habilidade para lidar com a frustração. Conseguir fazer sozinho é uma conquista”, afirma Aguilar.
De acordo com o psicólogo, mestre em educação e palestrante Marcos Meier, a neurociência tem mostrado que quando se desenvolve autonomia numa criança, ela fica mais inteligente, porque novas conexões cerebrais são formadas.
“Isso acontece quando ela resolve problemas, supera dificuldades ou conquista desafios, esses três fatores são a chave da autonomia. Mas há duas coisas que não se pode esquecer: liberdade de tomar a decisão e responsabilidade de assumir a consequência.”
Meier exemplifica: posso dar autonomia para usar uma roupa engraçada para ir na avó? Sim. A consequência vai ser, no máximo, uma risada amorosa. Posso dar autonomia para botar uma roupa de calor num dia frio? Não, porque a consequência pode ser ruim para a saúde dela. Isso também vale para o filho adolescente que quer pegar o carro emprestado: liberdade e responsabilidade têm que andar juntas.
É preciso, também, haver equilíbrio:
“A autonomia é uma necessidade emocional básica. Se der pouca autonomia para a criança, isso acaba sufocando. O oposto são os pais negligentes, que dão autonomia em excesso e ela não se sente protegida, acolhida. Tem que dar na medida certa”, diz o psicólogo.
Tenha paciência
Os cuidadores precisam se conter e dar espaço para a criança errar, mesmo que isso signifique demorar alguns minutos a mais na rotina, tolerar certa bagunça ou aceitar escolhas da criança que nem sempre parecem ideais para os adultos.
“A gente gera expectativa nos filhos de que sempre é preciso fazer o melhor. Mas é preciso investir na resiliência. Eu erro, eu fracasso, eu acerto. Entendo que tenho falhas, mas que vou ter outras chances”, afirma Renata Aguilar.
Para ela, os adultos de hoje têm que ouvir aquele dito: “deixa a criança fazer sozinha!” Ou, como a educadora e médica italiana Maria Montessori, que criou um método educativo usado em escolas do mundo todo, já dizia: “Nunca ajude uma criança em uma tarefa que ela sente que pode realizar sozinha”.
Tarefas em casa
Incentivar as crianças a participar das atividades domésticas não é exploração, pelo contrário, desenvolve a sensação de pertencimento, desde que respeitando o seu bem-estar e segurança, claro. Uma criança de 4 anos pode lavar louça? Sim, se for de plástico, mas não as facas ou os copos de vidro. Vai lambuzar o chão, cair água? Sim, e muitos vão pensar que a criança está só fazendo lambança, mas é preciso ver que ela está desenvolvendo autonomia.
“O sentimento de pertença está na base da saúde emocional. Quando entrevistam pessoas que tentaram suicídio, a maioria diz que não se sentia parte de nada, de grupos de amigos, da escola, da família. Participar das tarefas da casa traz saúde emocional, porque mostra que a criança faz parte da família”, diz Meier.
Depois, é importante recompensar não com guloseimas ou dinheiro, mas com elogios e agradecimentos: “muito obrigado por ter feito a sua parte”.