Sexta-feira, 15 de novembro de 2024
Por Redação O Sul | 19 de setembro de 2024
As ciências do comportamento mostram como o cérebro vai em busca de recompensas intermitentes.
Foto: Joédson Alves/Agência BrasilBloquear transferências Pix para contas de empresas, deixar o controle do próprio dinheiro na mão de familiares, deletar o Instagram e instalar no celular aplicativos que bloqueiam o acesso a jogos de azar. Esse é o manual básico que circula nas redes sociais entre grupos de ajuda para jogadores compulsivos que tentam deixar o vício nas apostas on-line conhecidas como “tigrinho”.
São centenas de mensagens com relatos de dívidas para agiotas e perdas de até R$ 200 mil, além de confissões de quem usou dinheiro da família para apostar e pedido de apoio dos que tiveram uma recaída. Embora volumosas, as conversas nesse tipo de comunidade seguem algumas regras. É proibido, por exemplo, pedir dinheiro. Em um deles, uma enquete mostrou que apenas uma minoria estava longe dos jogos há mais de seis meses.
“Tigrinho” é a forma que se convencionou a chamar jogos do tipo “slot”, que têm um mecanismo assemelhado ás máquinas caça-níquel. O apelido é derivado de um dos mais famosos nomes desse mercado, o “Fortrune Tiger”. Para ganhar, o apostador precisa acertar a combinação de três figuras iguais em três fileiras para receber prêmios em dinheiro.
A confeiteira Janaína (nome fictício) , de 35 anos, procurou um desses grupos no ano passado “no desespero”, como diz. O estopim para perceber a perda de controle no jogo foi o dia em que apostou (e perdeu em poucas horas) todo o dinheiro que a família tinha para pagar o aluguel da casa, de R$ 1,4 mil. Moradora de Guarulhos, região metropolitana de São Paulo, ela está há três meses sem jogar.
“Ainda não me sinto bem. É como se faltasse um pedaço de mim”, conta a confeiteira, que virou administradora de um grupo do WhatsApp de apoio entre jogadores compulsivos.
Em um desses grupos com 300 pessoas, está a cuidadora de idosos Roberta (nome fictício), de 42 anos, moradora de Tatuí, no interior paulista. Uma das funções dela é distribuir senhas para o aplicativo que bloqueia o acesso a jogos no celular e ajudar novos membros a instalar o sistema. Ela conta que começou a apostar em slot no ano passado em meio a um tratamento para o câncer.
Não se trata, porém, de apenas um hábito ruim. A compulsão por jogos é conhecida e investigada pela ciência há anos. Nos consultórios, normalmente, o quadro ganha o nome de ludopatia ou transtorno do jogo. Recentemente, porém, o problema vem ganhando novos contornos justamente por conta da disseminação de plataformas de jogos de azar on-line. É o que afirma Rodrigo Machado, psiquiatra do Programa de Transtornos do Impulso do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (Pro-Amiti). Ele conta que o programa, referência no país para tratamento de compulsões, incluindo as do jogo, tem sido mais procurado ano a ano.
“Geralmente a pessoa procura ajuda quando está na pior situação possível. Quando já se afundou em dívidas, quando estão em extrema vulnerabilidade. Esse cair da ficha, infelizmente, vem da pior forma”, afirma o médico, que chama atenção para a lacuna de dados no Brasil que mapeiam o tamanho do problema.
No ano passado, o programa do HC registrou o maior número de inscritos desde 2015, com um total de 160 participantes, 175% a mais do que em 2022.
O último estudo epidemiológico sobre o tema no país foi publicado em 2010, com a estimativa de que 2,3% dos brasileiros eram jogadores patológicos ou problemáticos. Procurado, o Ministério da Saúde não forneceu dados sobre quantas pessoas procuraram ajuda por conta do vício em jogos. Uma pesquisa publicada no início de agosto na The Lancet, porém, oferece um panorama global. A análise reuniu 3.692 estudos sobre o tema em 68 países e indicou que 1,4% dos adultos em todo o mundo estavam envolvidos em jogos de azar de forma problemática. (AG)