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As blusinhas da discórdia

(Foto: Reprodução)

A guerra na Ucrânia, a ascensão da economia chinesa e uma série de inquietações relacionadas a problemas que vão desde o ressurgimento da questão nuclear até as mudanças climáticas estão remodelando o sentido da globalização dos mercados. A ideia de que haveria a possibilidade de um grande mercado mundial, no qual vantagens locais como mão-de-obra barata, por exemplo, pudessem ser globalmente compartilhadas, passou a ser ameaçada por questões geopolíticas, cujas placas tectônicas se movimentam e deterioram uma tendência de integração que parecia ser perene. Com a volta do medo, impulsionado por maior instabilidade política, rápidas transformações tecnológicas e redefinição de parcerias e blocos comerciais trazem de volta mais protecionismo e o uso excessivo de salvaguardas debilitam o livre comércio.

Inevitável, nesse contexto, o retorno do debate entre liberais e keynesianos sobre os limites e o papel do Estado na economia, o que naturalmente embute muitas contradições ao tempo em que oferece uma oportunidade para que alguns dogmatismos sejam confrontados, especialmente diante dos interesses dos atores envolvidos nas disputas. O assunto não é novo. Há precedentes históricos que alimentam ambos os polos em discussão, assim como existem também diferentes pontos de vista baseados em ideologias, muitas delas contaminadas por ideias que se imaginavam superadas. Num mundo crescentemente sectário e xenófobo, é preciso, em momentos como este, abertura e boa vontade intelectual para absorver novas tendências, sempre considerando as particularidades que devem ser levadas em conta em qualquer intervenção que objetive a construção de um desenvolvimento econômico equilibrado, especialmente nas suas dimensões social, cultural e ambiental, pré-condições que hoje tornaram-se inegociáveis.

Os americanos, a propósito, na condição ainda de maior economia do planeta, se veem enredados num confronto sem precedentes com os chineses. As insinuações do gigante asiático nos mercados de alta tecnologia, energia limpa e “fábrica do mundo” colocaram muita pressão sobre a moeda americana, levando a questão até para além de uma “guerra comercial”. Algumas alíquotas para veículos automotores, baterias de lítio, semicondutores e painéis solares devem quadruplicar ainda em 2024. No Brasil, embora num contexto bem menos crítico, a discussão sobre a tributação de importações feitas através de plataformas eletrônicas baseadas na China ganhou as manchetes. O tema, embora circunscrito à importação de artigos de valores de até U$ 50,00, teve enorme repercussão por impactar compras que supostamente seriam feitas por consumidores de menor renda, cuja isenção tributária embutiria um importante aspecto social junto aos mais pobres.

Entretanto, para além do aspecto tributário em si, o assunto abre um debate muito mais amplo e estratégico, uma vez que remete às fragilidades de nosso modelo concorrencial com outros países, neste caso em particular com a China. O espetacular avanço de novas tecnologias permitiu que plataformas digitais chinesas ofereçam seus produtos, que gozam de grande competividade de custos em sua fabricação de origem, diretamente aos consumidores dos mais remotos cantos do Brasil. Orientados por algoritmos cada vez mais assertivos, plataformas como a Shein, Shopee e AliExpress estão impactando diretamente as indústrias brasileiras e todo o varejo, desde grandes redes até o pequeno lojista de cidades menores. Cresce o apelo para que o Congresso brasileiro aprove uma tributação adequada sobre as importações das “blusinhas chinesas”, tratamento jocoso que o tema ganhou após a polêmica ser instaurada e que revela a forma espirituosa como o brasileiro trata assuntos sérios. Para além disso, salta aos olhos que não será a tributação ou não das “blusinhas” o remédio para a nossa consagrada ineficiência tributária e trabalhista, bem como do nosso modelo estruturalmente hostil ao empreendedorismo. Para avançar, somente com amplas reformas, disposição para um enfrentamento que ainda não tivemos até agora.

Edson Bündchen

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