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As conturbadas relações de Woody Allen com seus filhos

Em livro feito para se defender, cineasta mostra inaptidão ao falar de mulheres e afirma que jamais foi um intelectual. (Foto: Reprodução)

Ao fim de “Apropos of nothing”, sua autobiografia recém-lançada nos Estados Unidos, Woody Allen diz que, em vez de viver na mente e nos corações do público, prefere viver no seu apartamento. A frase – que não poderia ser mais típica dele – surge só depois de 400 páginas em que o diretor americano de 84 anos revisita o passado e tenta dar satisfações sobre sua tumultuada vida. Com os direitos comprados agora pela Globo Livros, a obra chega ao Brasil até o começo de setembro, traduzida pelo escritor paulistano Santiago Nazarian. Terá o nome de “A troco de nada”. E, enquanto não sai por aqui, já desperta um acirrado debate sobre liberdade de expressão, linchamentos e como lidar com grandes artistas acusados de comportamento predatório.

Por anos, o fato de Allen ter se casado com a enteada, Soon-Yi Previn, foi visto como uma excentricidade. E descartou-se a acusação de sua ex-mulher, a atriz Mia Farrow, de que ele teria molestado sexualmente a filha adotiva Dylan, em 1992, quando ela tinha 7 anos e o casal se separava. Uma investigação concluiu, afinal, que a menina não sofrera abuso. Por isso, nada chegou à Justiça, e Allen voltou a fazer filmes como antes. Em 2002, na única vez em que compareceu ao Oscar, o diretor de clássicos como “Manhattan”, “Noivo neurótico, noiva nervosa” e “A rosa púrpura do Cairo” foi ovacionado de pé pelos colegas apenas por estar lá.

O “cancelamento” veio após a explosão do movimento #MeToo. Quando o silêncio sobre casos de assédio e abuso começou a ser quebrado em Hollywood, o tratamento do showbiz a artistas acusados no passado mudou. Já adulta, Dylan falou do assunto publicamente, ao lado da mãe e do irmão Ronan, o jornalista que ajudou a revelar os crimes do megaprodutor Harvey Weinstein, condenado a 23 anos de prisão por estupro e agressão sexual. Moses, outro filho do casal, saiu em defesa de Allen e acusa Mia de fazer lavagem cerebral. Há anos, o drama familiar é alimentado com relatos fortes dos dois lados. Para quem está de fora, é impossível saber o que realmente aconteceu.

Exílio cinematográfico

Na dúvida, Hollywood cortou relações com o diretor. Conforme ele mesmo narra no livro, atores que passaram a vida esperando por uma ligação de Allen começaram a recusar seus convites. A Amazon rompeu um contrato milionário, e com isso “Um dia de chuva em Nova York” (2019) jamais foi exibido na cidade que homenageia, encontrando distribuidores apenas no exterior. Seu filme mais recente, o inédito “Rifkin’s festival”, encontrou guarida em uma produtora da Espanha, onde foi rodado. Os nomes que encabeçam o elenco também são europeus, como o francês Louis Garrel e o austro-alemão Christoph Waltz.

A relação com as mulheres e os filhos

Mais espinhoso — e ultrajante — é o tratamento que dá às mulheres. Embora tente provar que sempre foi respeitoso com elas, o diretor não se ajuda muito. Afirma que passou a ler apenas para impressionar o que define como “gostosinhas boêmias” de “meias-calças apertadas”. Fala que ainda é grande amigo de Louise Lasser, sua segunda mulher e atriz em três de seus filmes. Mas é de se duvidar após o retrato que ele pinta de Louise, muito semelhante ao que faz de Mia Farrow. Nos dois casos, depois de louvar a beleza e sensualidade delas, Allen recorre ao histórico de problemas familiares das ex-mulheres, conclui que flertavam com a loucura e se lamenta de não ter percebido as “bandeiras vermelhas”.

Salta aos olhos, no livro “A troco de nada”, a forma como Woody Allen descreve sua relação com enteados e filhos. Para justificar a normalidade de seu relacionamento com Soon-Yi, que para ele não poderia ser considerado incesto, o cineasta argumenta que nunca morou ou foi casado com Mia, pouco sabia sobre o cotidiano da casa dela e jamais teve uma relação paternal com a atual mulher, o que o pai adotivo dela, Andre Previn, confirmava. Soon-Yi hoje tem 49 anos e os dois mantêm o relacionamento desde 1991, tendo se casado em 1997. Ao acusar Mia de maltratar os filhos adotivos, Allen recorre a relatos da atual mulher e de Moses. Lembra que a moça já era maior de idade quando os dois se envolveram e diz que o relacionamento com Mia estava em frangalhos, embora “entenda a raiva dela”.

Mas, ao falar de Dylan e Moses, tenta dar exemplos de como era um pai dedicado, que frequentava reuniões escolares e não poupava esforços para mimá-los. Conta, ainda, que sempre teve esperanças de Dylan procurá-lo quando ficasse mais velha. Sobre Ronan, diz que o amava e acredita ser seu pai biológico (e não Frank Sinatra, como Mia já insinuou), mas acusa o filho de hipocrisia e de ter tentado abafar uma reportagem com Soon-Yi.

Um leitor de 2020 pode estranhar o argumento de Allen para a pouca presença de atores negros em seus filmes: “Cotas podem funcionar com muita coisa, mas não em elencos. Sempre escolho a pessoa que se encaixa de forma crível aos meus olhos”. Em seguida, conta ter batizado os filhos em homenagem a negros que admirava.

Se passagens como essas revelam um homem com dificuldade para enxergar pela perspectiva do outro, Allen tem seus melhores momentos quando olha para si mesmo e debocha de suas neuroses. É difícil não rir quando ele narra sua quase fuga de uma festa pela janela ou de quando ele e Soon-Yi acharam que estavam na casa de Roman Polanski, mas o verdadeiro anfitrião era o bilionário russo Roman Abramovich.

Como sempre fez ao longo da vida, o diretor é habilidoso em romper com a vida real e elevá-la ao absurdo da comédia. Ele também observa, porém: “Sempre odiei a realidade, mas é o único lugar onde você encontra boas asinhas de frango.”

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