Segunda-feira, 04 de novembro de 2024
Por Redação O Sul | 4 de novembro de 2024
Antes de completar dois anos do dia em que, num ato de fúria golpista, foi arremessado ao chão e transformado em pedaços, o relógio histórico do Palácio do Planalto vai finalmente retornar ao Brasil. Restaurado na Suíça, o relógio está praticamente pronto para o embarque, previsto para ocorrer nas próximas semanas.
De origem francesa, o objeto raro virou um símbolo dos ataques à democracia brasileira em 8 de janeiro de 2023, por causa do grau de destruição e da brutalidade da cena, gravada pelo circuito interno de vigilância da Presidência da República. As imagens rodaram o mundo.
Datado do século XVII, o relógio de Balthazar Martinot e André Boulle foi trazido ao Brasil por D. João VI, em 1808. A peça havia sido presenteada à família real portuguesa pela corte francesa. Balthazar Martinot era o relojoeiro oficial do rei Luís XIV e fabricou apenas dois exemplares. Além do que foi danificado nos ataques de 8 de janeiro, o outro está exposto no Palácio de Versalhes, na França. Possui metade do tamanho do que pertence ao patrimônio nacional.
A destruição da relíquia foi provocada por Antônio Cláudio Alves Ferreira, de 32 anos. O mecânico e militante radical trajava uma camiseta preta com o rosto do ex-presidente Jair Bolsonaro no dia da intentona golpista e frequentava acampamentos que reuniam bolsonaristas radicais – defensores de um golpe militar, eles se aglomeraram em frente ao Quartel-General do Exército inconformados com a vitória eleitoral do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Ele disse à Justiça que resolveu destruir o relógio, mesmo ciente de que estava sendo filmado, “em razão da reação dos órgãos de segurança”. Depois do ato de vandalismo, Ferreira conseguiria escapar e passar dezesseis dias foragido. Ele seria preso no dia 23 de janeiro pela Polícia Federal, depois de se esconder na casa de amigos por temer “eventual represália de pessoas da esquerda”. Natural de Caldas Novas (GO), hoje ele está recolhido no Presídio Professor Jacy de Assis, em Uberlândia (MG).
Em junho passado, o Supremo Tribunal Federal condenou o bolsonarista a 17 anos de prisão por cinco crimes: associação criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça, com emprego de substância inflamável contra o patrimônio da União e considerável prejuízo. Ele e os demais réus foram condenados também a pagar solidariamente indenização de R$ 30 milhões, a título de danos morais coletivos.
No rescaldo dos ataques, o restauro do relógio foi considerado “muito difícil” pelo diretor de curadoria dos Palácios Presidenciais, Rogério Carvalho. Apesar de exposto nos corredores do Planalto, ele não estava em pleno funcionamento. Segundo o Gabinete Pessoal do Presidente da República, a máquina do relógio não funcionava havia anos — ou seja, ele estava parado e não marcava a hora exata do ataque — o que motivou a circulação de uma teoria conspiratória segundo a qual o ataque havia sido uma armação.
Nas semanas seguintes ao 8 de Janeiro, a Embaixada da Suíça ofereceu ajuda ao governo federal por deter conhecimento histórico na relojoaria. Segundo a ministra da Cultura, Margareth Menezes, a cooperação seria uma “honraria” ao Brasil. O acordo envolveu o ministério, a Presidência da República e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
A representação diplomática do país europeu disse que os ataques às sedes dos Três Poderes “despertaram profunda emoção na Suíça, assim como uma forte solidariedade com as instituições e a democracia brasileira”.
O esforço de restauração mobilizou um conjunto de especialistas suíços e brasileiros, incluindo relojoeiros, curadores e artesãos que se engajaram na missão de planejar e executar as etapas de conserto da peça. Eles vieram ao Brasil em maio de 2023 para examinar o estado do relógio. Em dezembro de 2023, levaram à Suíça as suas partes. Agora, a parceria chegou à fase final e a peça será devolvida quase um ano depois, segundo o embaixador Pietro Lazzeri.
“A restauração está praticamente concluída e vamos devolver nas próximas semanas, acredito que em dezembro ou janeiro no máximo, com uma cerimônia. Vamos fazer tudo seguindo a Presidência, em coordenação com a Janja, que pegou esse tema”, afirmou o embaixador. Conforme o diplomata, o processo envolveu etapas complexas, como a obtenção de matéria-prima. A peça é feita em casco de tartaruga e bronze.
No governo, a recuperação do acervo de bens da Presidência da República de fato vem sendo supervisionada de perto pela primeira-dama Janja. Um laboratório foi montado, no início deste ano, no Palácio da Alvorada, a residência oficial onde moram Lula e Janja. O espaço fica no subsolo da capela do Alvorada. Lá trabalham restauradores da Universidade Federal de Pelotas, em parceria com o Iphan, que cobre os custos. Ao todo, eles fazem reparos em 20 obras de arte, como telas, entre elas As Mulatas, de Emiliano Di Cavalcanti, esculturas, como O Flautista, de Bruno Giorgi, mesas decorativas e uma ânfora portuguesa.