A competência dos tribunais da República vem expressa na CF/88. Assim, devem-se analisar as regras de competência a partir da
Constituição, buscando-se harmonizar a(s) lei(s) infraconstitucional(ais) com a Carta Constitucional, e não o contrário.
O artigo 102, da CF/88, define a competência do Supremo Tribunal Federal, a partir do seu inciso I, onde se verifica a competência
originária para processar e julgar matérias de natureza constitucional (ação direta de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade, ação por descumprimento de preceito fundamental etc.). É a chamada competência em razão da matéria. Em matéria penal, a competência do STF se dá em razão do cometimento de crimes comuns por determinadas pessoas (competência em razão da pessoa), como se nota da dicção do inciso I, letras “b” e “c”, do
art. 102, (eg: Presidente e Vice-presidente, Deputados e Senadores, Ministros, Comandantes das Forças Armadas etc.). O STF julga, ainda, originariamente, ações de habeas corpus, mas sempre quando o paciente ou a autoridade coatora forem determinadas pessoas (foro por prerrogativa de função) ou tribunais. Nota-se, então, que a competência originária da nossa Suprema Corte, em matéria criminal, se dá sempre em razão das pessoas implicadas no crime comum (ou de responsabilidade) praticado.
No caso do “inquérito do golpe” (inquérito das fake news, inquérito
do fim do mundo e outras denominações que lhe foram dadas), instaurado no âmbito do STF, sob a relatoria do eminente e culto Ministro Alexandre de Moraes, entendemos que tem havido investigação pela Polícia Federal e denúncia pelo Ministério Público Federal sem a observância dessas regras de competência, com a maxima venia de opiniões contrárias.
Explicamos melhor: A Lei 14.197/2021 (acrescentou novos tipos
penais ao Código Penal) trouxe ao ordenamento jurídico nacional os “Crimes contra o Estado Democrático de Direito”, onde muitos autores dos atos antidemocráticos praticados no dia 08 de janeiro de 2023 estão sendo enquadrados. Ocorre que esta lei veio substituir a antiga Lei 7.170/83 (Lei de Segurança Nacional), revogando-a em sua totalidade, como prescreve o art. 4º da Lei 14.197/2021.
Entretanto, muitos dos novos tipos penais trazidos com a nova lei
guardam muita semelhança com os tipos penais previstos na antiga Lei de Segurança Nacional. E quanto a esta, o Supremo Tribunal Federal, por decisão de seu Tribunal Pleno, no julgamento do RC 1468/RJ, julgado em 23/03/2000, cujo relator foi o eminente Ministro Ilmar Galvão, disse que os crimes nela contidos se tratavam de crimes políticos.
Se os crimes da revogada Lei de Segurança Nacional eram de natureza política, como disse o STF, os da nova Lei 14.197/2021 também o
são (virtude da coerência, de Ronald Dworkin). E, em sendo crimes de
natureza política, não são crimes comuns e, portanto, a competência para o processamento e julgamento é do Juiz Federal de primeira instância, na dicção do art. 109, inciso IV, da Constituição de 1988, com recurso ordinário ao Supremo Tribunal Federal, conforme preceitua o art. 102, inciso II, letra “b”, da Constituição Federal (virtude da integridade do ordenamento jurídico, de Ronald Dworkin).
Demais disso, o argumento da necessidade de observância das regras de conexão e continência, para a definição da competência do órgão
julgador, institutos previstos no Código de Processo Penal, somente pode ser esgrimido após a fixação da competência absoluta, prevista da CF/88, e não antes dela, como parece ser o caso.
No que tange aos militares (federais ou estaduais), pelo mesmo
raciocínio, aqueles que, no episódio do dia 08 de janeiro de 2023, agiram no exercício de suas funções militares ou em razão dessas funções, deveriam responder perante a Justiça Militar, por força dos artigos 124 e 125 da CF/88, pois seus crimes seriam de natureza militar, por força da Lei 13.491/2017.
Caso tais crimes sejam/fossem definidos como “crime político”, pelos mesmos fundamentos já mencionados, deve(m)riam ser processados perante o Juiz Federal de primeira instância, com eventual recurso ao STF, uma vez que, salvo os comandantes das Forças Armadas, no caso específico de crime comum, os militares não detém foro por prerrogativa de função.
Portanto, o processamento e julgamento das pessoas comuns do
povo, originariamente pelo STF, ofende a CF/88, sendo, por isso,
absolutamente inconstitucional.
Desembargador Amilcar Fagundes Freitas Macedo – ex-presidente do TJM/RS.