Para Ariano Suassuna, haveria duas armas para lutar contra o desespero: o riso a cavalo e o galope do sonho. Seria assim, segundo o polímata paraibano, que a dura, mas também fascinante experiência da vida poderia ser levada a bom termo. Ilusão e riso não deixam, é fato, de serem também uma espécie de autoengano.
O autoengano, a propósito, tanto no mundo natural, de forma geral, como no reino animal, em particular, tem sido uma notável arma de sobrevivência. A mistura de astúcia, agilidade, sorte e força bruta, combinadas, isoladas ou recombinadas, tem servido a homens, bichos e plantas para esquivarem-se dos espinhos nessa sinuosa e intrigante jornada da força vital que nos empurra à frente.
O bicho homem, bem a seu estilo, tratou de engendrar à estratégia do engano notas ainda mais ardilosas, dentre as quais a manipulação astuciosa da linguagem, desprovida inclusive de escrúpulos ou sentido ético, um verdadeiro veneno.
Com a brevíssima revisão do autoengano em mente, voltemos nossos olhos para algo menos complexo, mas que carrega traços manipulatórios visíveis. Bom destacar que, se a ilusão e o autoengano possuem valor sob um ponto de vista mais estrutural e até filosófico, no tratamento de assuntos econômicos esse ardil pode se revelar um desastre.
Nesse sentido, a questão de como alguns temas de grande impacto na vida nacional são debatidos pela mídia e por formadores de opinião só podem ser compreendidos a partir de um melhor entendimento sobre a gênese que lhes é inerente. Ou seja, é preciso cavar um pouco mais fundo para que se tenham respostas razoáveis. Sem isso, fica manca a análise e pior eventuais conclusões.
Dois desses macrotemas, cujo encaminhamento se encontra enviesado, estão relacionados com a renúncia fiscal e a sonegação de impostos, assuntos que deveriam estar em absoluto destaque, dado o seu impacto nas contas públicas.
A grande mídia, todavia, tem focado quase que totalmente a atenção para a ponta das despesas do Governo, nas reformas administrativa e tributária, o que, em princípio, faz todo sentido, mas que deve ser complementado por um alargamento do foco, trazendo, e este é o ponto que pretendo destacar, a atenção para o imenso pote de ouro, ainda praticamente intocável, localizado na indústria de isenções fiscais e sonegação de impostos.
De acordo com o TCU, ao final de 2022, o tamanho das renúncias fiscais atingiu o extraordinário percentual de 5.90% do PIB brasileiro. Cerca de R$ 580 bilhões deixaram de ser arrecadados, correspondendo a 31.30% sobre a receita primária líquida. Foram R$ 461,1 bilhões de benefícios tributários e R$ 120,4 bilhões de benefícios financeiros e creditícios.
Não se trata, contudo, de simplesmente zerar essa conta, algo impensável, dado que há muitos benefícios cujos impactos sociais como o Simples Nacional, Entidades Sem Fins Lucrativos, Pesquisas Científicas, Medicamentos e Benefícios ao Trabalhador são essenciais para maior justiça tributária e social.
Já o Sonegômetro, criado pelo Sindrofaz, destaca que o Brasil deixa de arrecadar cerca de R$ 600 bilhões por ano, devido à sonegação fiscal. Dificuldades para executar as cobranças das dívidas, lentidão do Sistema Judiciário e um verdadeiro cipoal de legislações tributárias convergem para que R$ trilhões se acumulem sem que os impostos sejam efetivamente recolhidos ao Tesouro. Esse quadro de ineficiência estrutural transforma o Brasil no paraíso para fraudadores e sonegadores, enquanto fragiliza programas de apoio à população mais carente, vítima maior da inoperância estatal.
Evidencia-se, diante desse quadro, a urgente necessidade de uma discussão séria e consistente por parte da sociedade de forma geral e das lideranças e imprensa de modo específico, sobre a oportunidade/necessidade dos atuais benefícios fiscais, tributários e creditícios, além de colocar a sonegação fiscal no mesmo patamar de urgência do combate à corrupção. Não é mais possível que o País continue na senda do autoengano em temas de tamanha importância.