Segunda-feira, 23 de dezembro de 2024
Por Emílio Papaléo Zin | 1 de fevereiro de 2023
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul. O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.
As pessoas, principalmente quem é do Rio Grande do Sul, jamais esquecerão o que ocorreu em Santa Maria, na Boate Kiss. Sempre tive uma covardia assumida em me inteirar, a fundo, desse assunto. Embora já tenha lido notícias e assistido uma pilha de documentários e filmes sobre desastres, nunca pesquisei detalhes do calvário daqueles que viveram e vivem aquela monstruosidade. E o motivo está no verdadeiro temor de que algo parecido aconteça com aqueles a quem amo.
Até que, dias atrás, a Netflix transformou em minissérie um livro que conta a história daquela tragédia. Não sou dos que chora vendo filmes. Mas foi impossível conter as lágrimas assistindo a reconstituição do incêndio e do tormento das famílias vitimadas.
São várias as lições e reflexões que a série provoca. A possibilidade de, por exemplo, em uma única noite, famílias inteiras verem alteradas para sempre suas rotinas, planos, desejos e sonhos é assustadora. O medo está ali: ninguém, literalmente, está em segurança ou imune. Foram 242 jovens que perderam a vida numa festa, como várias que nossos filhos e os filhos dos nossos amigos e conhecidos foram, vão ou irão algum dia.
A história dá a entender que se não houvesse uma mobilização de pais na constituição de uma Associação, o escândalo, revelado na publicidade dos fatos que ocorreram e se sucederam, teria sido bem menor. Se até hoje a questão não teve solução final, um dos legados é que a organização inteligente das pessoas, quase sempre pacífica, é um importante meio de se fazer ouvir.
A minissérie traz uma fala de um dos heroicos médicos que participou do socorro possível na ocasião, em que há uma constatação estarrecedora: a combinação do fogo emitido pelo sinalizador com a espuma que revestia o teto da boate se transformou em cianureto. A mesma técnica utilizada pelos alemães nos campos de concentração da Segunda Guerra para eliminar judeus. A intoxicação leva à morte, inclusive após a inalação. Ou seja, além das queimaduras, os jovens foram mortos também por envenenamento. Sem falar nas sequelas de outros tantos estudantes e daqueles que os ajudaram no momento.
A par da dor, do sofrimento, do sentimento de impunidade, do descaso de certas autoridades e das irreparáveis perdas que a tela mostra, fica escancarada a negligência protagonizada em cadeia e a fuga das responsabilidades de quem organizou, de quem comprou e permitiu que o artefato fosse aceso, de quem não fiscalizou o número de pessoas (cabiam 700 e estavam mais de 1000), de quem permitiu o funcionamento do estabelecimento, de quem dificultou a saída, de quem não avisou o início do incêndio mesmo de posse de um microfone.
No final do último capítulo, a discussão judicial gira em torno da insistência da associação dos pais das vítimas de que os quatro acusados fossem a júri popular por homicídio doloso e não julgados por um colegiado de juízes técnicos. O argumento é o de que o júri popular representa o conjunto de toda a sociedade.
Ao final da sustentação oral que fez o advogado contratado pela Associação, o pai de uma das vítimas, presente ao Tribunal, pede a palavra à Ministra que presidia a sessão de julgamento para se manifestar, o que não é comum, tampouco adequado, pois o advogado está lá para dar voz ao cliente. A Ministra concorda e esse pai, líder da citada Associação, sem qualquer formação em direito, faz uma didática e comovente explicação do que são culpa e dolo.
“O que aconteceu não foi um acidente!”, diz o pai com a voz embargada.
E utiliza exemplos que qualquer pessoa é capaz de entender.
“Acidente é quando um carro derrapa em um dia de chuva e causa danos. Mas quando o motorista toma uma garrafa de cana e atropela alguém a coisa é diferente.
Acidente é quando um barco vira pelas condições adversas de um mar que pode mudar de uma hora para outra. Mas não quando o dono do Bateau Mouche permite que 142 pessoas naveguem e naufraguem, por excesso de peso, na embarcação construída para suportar apenas 60, e sem salva- vidas.
Acidente é quando a chuva intensa provoca deslizes de terra. Porém, não há acidente quando o poder público permite a construção de um restaurante e casas no caminho da barragem que se rompeu em Brumadinho, afogando em lama todas as pessoas que ali se encontravam.
Acidente é um curto circuito. Porém não quando dirigentes do Flamengo deixam 10 atletas adolescentes dormirem dentro de um contêiner consumido pelo fogo, como se fosse dormitório, sem qualquer inspeção ou autorização prévias da Prefeitura.”
O emocionado pai não poderia prever o que ocorreria mais tarde com a delegação inteira de um conhecido time de futebol. Pois acidente aéreo é quando ocorre pane no motor (e olhe lá), mas não quando o avião se espatifa porque algum imbecil ganancioso mal calculou a quantidade de combustível, como no caso da Chapecoense.
Todas essas tragédias, que carregaram centenas de vidas, tiveram, sim, a escolha, a decisão, a ação ou omissão de alguém, ou de alguns, que assumiu ou assumiram, nos respectivos e exatos momentos, o risco fatal de suas condutas.
É claro que ninguém saiu de casa na fatídica noite de Santa Maria com intenção de matar (dolo) 242 jovens. Mas que vários, e não só 4 pessoas, são responsáveis (culpa) por contribuírem, direta ou indiretamente, pelo que aconteceu, são. A participação desse ou daquele é que medirá a extensão da pena que cada um deverá cumprir atrás das grades.
Já se vão mais de dez anos e ainda nada se resolveu em definitivo. Às pobres famílias ainda resta acreditar na justiça por uma ínfima reparação que traga um pouco de paz e não seus filhos de volta. Para o resto dos pais, amedrontados como nós, e por incrível que pareça, apenas torcer para que isso nunca mais se repita e que nossos filhos continuem voltando para a casa.
Emilio Papaleo Zin – Desembargador Federal do Trabalho
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul.
O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.