No Auxiliadora, bairro nobre de Porto Alegre, uma pequena escola de educação infantil tinha em torno de 50 alunos em 2019. Ao longo da pandemia, em 2020, o número caiu vertiginosamente – menos de 15 crianças continuaram matriculadas. Resultado: a instituição particular, com 11 anos de história, decretou falência em março de 2021.
“Os pais não viam mais sentido em pagar cerca de R$ 2 mil para o período integral, sendo que estavam trabalhando em casa ou contratando babás”, conta Amanda Souza, professora que perdeu o emprego após o fechamento da escola.
Não é um caso isolado. Entre 2020 e 2021, no auge da pandemia de Covid-19, o Brasil perdeu 2.559 creches privadas, segundo a última edição do Censo Escolar, divulgada neste mês. Entram na conta tanto as que cobram mensalidades dos alunos quanto as conveniadas com alguma prefeitura.
Os dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) apontam que o maior impacto foi sentido nas regiões Nordeste (16% das unidades foram fechadas) e Norte (9%).
Segundo especialistas, a falência das creches particulares, a curto prazo, pode levar mais famílias (já com dificuldade de pagarem mensalidades) para a educação pública.
“Naturalmente, vai haver uma pressão maior na esfera municipal”, diz Olavo Nogueira Filho, diretor-executivo da ONG Todos Pela Educação.
Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, o secretário de Educação, Renan Ferreirinha, notou um aumento na demanda por creches municipais.
“A gente tem percebido que, com a ‘quebradeira’ do setor privado e o empobrecimento da população, a procura só aumentou”, diz.
Segundo ele:
Em 2021, 22 mil crianças aguardavam por uma vaga na fila, enquanto 84 mil estavam matriculadas. Em 2022, a prefeitura do Rio ampliou a capacidade de atendimento, e o número de alunos em creches públicas e parceiras subiu para 92 mil. Ainda assim, mesmo com esse aumento de 8 mil matrículas, a fila diminuiu pouco: 20 mil manifestaram interesse em estudar, mas não foram contemplados.
“Estamos tentando não deixar ninguém para trás”, afirma Ferreirinha.
Além da pressão sobre a rede pública, outra consequência da falência das creches privadas é o desemprego. Assim como Amanda, citada no início da reportagem, 6.537 professores deixaram de trabalhar em creches entre 2020 e 2021.
“O jeito foi conseguir um bico para trabalhar como babá. Eu e meus colegas montamos uma rede de apoio para que todo mundo tivesse alguma fonte de renda”, diz a docente. “Até entrei em um curso de administração para ampliar meu leque profissional.”
“Só em abril de 2021, com a volta do ensino presencial, encontrei outra vaga em creche.”
O que explica a crise?
Segundo especialistas, três fatores podem explicar a crise:
- A legislação brasileira não obriga que os pais matriculem seus filhos na creche. Ao contrário da pré-escola, ela é uma etapa opcional, apesar de toda a sua importância no desenvolvimento infantil (leia mais abaixo).
- Diante da suspensão das atividades presenciais na pandemia, famílias optaram por cancelar a matrícula das crianças nas creches. Não viram sentido em continuar pagando as mensalidades e usufruindo apenas de interações remotas.
- A crise financeira e o desemprego também colaboram para uma menor procura pelo serviço no âmbito privado.
- Beatriz Abuchaim, gerente de conhecimento aplicado na Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, acrescenta que escolas de educação infantil têm um custo maior de manutenção. “São instituições que precisam de um número maior de adultos por aluno.”
“Muitas famílias precisaram contratar alguém para cuidar da criança, já que a escola ficou sem oferecer esse serviço durante boa parte do ano letivo, o que trouxe custos extras. Por isso, cancelaram as matrículas”, afirma Bruno Eizerik, presidente da Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep).
Ele explica que a dificuldade das creches em continuar pagando as despesas (salários de funcionários e contas), mesmo com a queda no número de alunos, tornou a situação insustentável. “São escolas, em geral, pequenas, de bairro. As que ofereciam outras etapas além dessa, como o ensino fundamental, ainda conseguiram se sustentar.”
Em São Paulo, o Berçário e Educação Infantil Colégio Itatiaia (que atende a faixa etária de 0 a 6 anos) perdeu metade dos alunos: de 120 crianças antes da pandemia, restaram 60, conta o diretor da unidade do Paraíso, Francisco Lavieri.
“Em agosto de 2020, outros locais foram autorizados a funcionar antes das escolas, como casas de brincar. Os pais tiraram os alunos do colégio e colocaram nessas instituições. Naquele momento, chegamos a 40 alunos, apenas”, diz.
A instituição conseguiu resistir à crise porque havia um fundo de segurança financeira. “Ainda assim, não teria sido suficiente para dois anos de pandemia. Tivemos a sorte de muitas famílias nos ajudarem: algumas fecharam acordos para continuar pagando mensalidades durante o período de fechamento, com o benefício de ganharem descontos no ano seguinte.”
Pressão no setor público
Nogueira Filho, do Todos Pela Educação, aponta que pode ter havido uma migração de crianças do setor privado para o público, por causa da crise financeira. Mas, como os dados de matrículas são computados pelo Inep em maio, essa movimentação no segundo semestre de 2021 ainda não aparece nos números do Inep.
“O quadro mais preciso será visto na próxima edição do Censo. Mas já sabemos que há menos creches privadas funcionando, e a situação continuará assim a curto prazo”, diz. “Não é um serviço que você liga e desliga tão rapidamente.”
Segundo ele, o Brasil já enfrenta um problema de falta de vagas nas creches. Por mais que o Plano Nacional de Educação (PNE) tenha estabelecido a meta de que ao menos 50% das crianças de 0 a 3 anos estejam matriculadas em creches até 2024, o índice de 2019 (antes da pandemia) mostrava que estávamos no patamar de 37%.
Entre o quartil mais pobre, o índice era ainda menor: 28%.
A curto prazo, até que o mercado se ajuste, o déficit de vagas existente em alguns municípios pode aumentar.
A Secretaria de Educação do Recife, por exemplo, informa que houve um aumento na procura por vagas de creches públicas na capital. Em nota, o órgão menciona as “dificuldades financeiras de várias famílias e o fechamento de muitas unidades privadas de ensino”. Segundo o Censo, das 372 creches privadas da cidade em 2020, 329 continuaram funcionando em maio do ano seguinte.
Em São Paulo, dados da Secretaria, de outubro de 2021, mostram que, em relação a 2020, houve um aumento de 34% no número de alunos de todos os ciclos (não só de creche) que pediram transferência da rede privada para a municipal.
Crianças pobres sentirão mais a crise
O maior problema de sobrecarregar a rede pública é prejudicar justamente as crianças mais pobres.
“É aí que mora a maior preocupação. São alunos que não contam com o mesmo suporte em casa. No ensino remoto, na melhor das hipóteses, eles conseguiram manter um vínculo mínimo com a escola”, afirma Nogueira Filho, do Todos Pela Educação.
Abuchaim, da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, menciona ainda outras consequências negativas para as famílias de classes mais baixas:
“Sem creche, o adulto de referência não consegue voltar a trabalhar. Quando houver um reaquecimento da economia, a mãe desempregada, se não tiver com quem deixar o bebê, não vai sair de casa. Isso nutre o ciclo da pobreza”, afirma.
Na primeira infância, é dada a base que será usada para a aprendizagem posterior das crianças. “A educação infantil proporciona interações adequadas, e amplia repertório social e cultural. Há um potencial de reduzir desigualdades”, diz.
Possíveis soluções
Para evitar que os mais pobres sejam prejudicados, “é fundamental que o poder público tenha em mente soluções para expansão de vagas com qualidade, priorizando a população mais vulnerável”, diz Nogueira Filho.
“Nos últimos anos, tivemos exemplos de cidades que, por meio de processos de conveniamento [entre prefeituras e instituições privadas] ou de regulação bem construída, conseguiram aumentar a rede, como São Paulo e Londrina (PR).”
A creche Creche Monika e Ricardo Henrique Misson, em Uberaba (MG), é um exemplo de instituição privada e conveniada que sobreviveu à pandemia graças aos auxílios do governo federal (na complementação de salários de professores) e municipal (pela transferência anual de recursos via Fundeb).
“Chegamos a ter 104 alunos, mas caímos para 63 na pandemia. São quase todos de baixa renda, porque estamos em um bairro de classe baixa da cidade”, conta Wellington Lobão, presidente da instituição. “Se tivéssemos fechado, essas famílias enfrentariam dificuldade de encontrar vaga.”