Há, de quando em vez, crise econômica. Muita gente, exigindo condições dignas de vida, pelo menos emprego, pragueja contra o capitalismo, com mais ênfase contra o neocapitalismo. Personaliza-se o capitalismo e se o xinga, imputando-se-lhe os males do viver a vida. Fala-se desse sistema econômico (em verdade, um sistema social) como se a execrar um demônio miasmático atemporal; um efeito sem causa.
Não existe capitalismo como entidade autogerada. Somos o\as humano\as que inventamos formas de viver, dentre tantas, o capitalismo. Se pusermos a História em marcha à ré, volveremos à agricultura primitiva, ou à selva. Se tocarmos adiante as relações sociais, será o que, dialeticamente, fizermos ser, ou a História engendrar. O\as humano\as, em qualquer maneira de existir que arranjemos, seremos responsáveis pelo devir, preste o futuro, ou não.
O busílis da questão: parte da humanidade há-se por boa e atribui as agruras da Terra à outra fração, que conspiraria para o mundo seguir como está: frio, interesseiro, violento, calculista, consumista; numa palavra, desumano. Ora, tudo o que a humanidade fez, faz, ou fará, foi, é, será humano.
O melhor que encontramos é humano, o pior que há é humano. A humanidade produz a humanidade: as condições materiais, as circunstâncias ideológicas; o modo de produção, os valores circulantes. Do resultado, há quem goste, há quem não. Aprecia quem leva vantagem e quem seja ideologicamente (no sentido marxiano) ludibriado\a; o\as excluído\as que tenham consciência das circunstâncias não estarão contentes. Fico com o\as descontentes.
Contudo, a pensar: esse modo de produzir – que também é um modo de viver – chamado de capitalismo espalhou-se pelo mundo quando nascia o século XIX. Tem pouco mais de 200 anos. Que mudou desde então? Ou seja: o mundo, o capitalismo no mundo, nós todos no mundo capitalista, no que demos?
Em 1800 éramos um bilhão de pessoas; somos oito. Morríamos com 27 anos; vivemos quase 80. Crianças trabalhavam até o esgotamento, mulheres eram “coisa” dos homens. Morriam 200 pessoas por mil nascidas; hoje, 6. O analfabetismo era a regra. Dormia-se entre piolhos, percevejos, pulgas, chatos, ratos, morcegos. Morríamos de desinteria.
Isso mudou muito. Já não somos vassalos, ainda que à maior parte de nós falte plena cidadania, o\a patrão\a já não dispõe de 80 horas semanais do empregado\a, grande parte das crianças é protegida, mulheres conquistaram independência significativa, temos vacina, o poder das igrejas foi relativizado, a Terra arredondou-se.
O que avançamos sobre o mundo de miséria que a Idade Média católica nos deixou é contribuição do capitalismo. São avanços consideráveis. Parece que estou tecendo loas ao resultado capitalista? Não! Antes, gostaria de vê-lo superado por um sistema social igualitário, sem nenhuma ordem de privilégio. Não obstante, reconheço a obra capitalismo. Alguém disse (parece que não foi Diderot, mas Meslier) que a humanidade só seria feliz quando o último rei fosse estrangulado nas tripas do último padre.
Concordo, e quero incluir o\a último\a capitalista. Mas aí, para ser coerente, não posso escrever meus textos em um computador capitalista, publicá-los em um jornal capitalista, levá-los à internet capitalista, lê-los com óculos capitalistas, sentado em uma poltrona capitalista. Se sou contra um sistema, sou contra o que do sistema decorra. Ou sou cínico\a.
O reclame por vida digna sempre será razoável. Um emprego é condição de dignidade. Todavia, ironicamente, resta um reclamo capitalista: mais emprego requer mais produção, mais consumo, mais poluição, mais destruição do planeta, mais maldito capitalismo. Clamores legítimos não autorizam simular ingenuidade sobre o modo de produção e de vida vigentes.
Dignidade é mais que emprego; emprego é subsistência. Pedir o justo emprego, porém, é um pedido de produção e consumo no sistema. Sim, há muito é tempo de revolucionar as iníquas relações capitalistas, não só as de produzir, mas as de viver. Paradoxalmente, entretanto, urge que o capitalismo, reforçando-se, empregue o\as excluído\as do sistema capitalista. A solução dessa equação ainda vai demorar.
(Léo Rosa de Andrade – Doutor em Direito pela UFSC, Psicanalista e Jornalista – Instagram: @leorosadeandrade)