Segunda-feira, 23 de dezembro de 2024
Por Redação O Sul | 22 de dezembro de 2024
Durante três meses e 18 dias, Gisèle Pelicot saiu do Palácio da Justiça de Avignon, na região da Provença, sob aplausos de mulheres que fizeram dela um símbolo feminista meses antes da última quinta-feira, quando seu ex-marido, Dominique Pelicot, e outros 50 homens foram condenados por crimes como estupro e agressão sexual. Mas o que a vitória nos tribunais da mulher de 72 anos que, por ao menos uma década foi drogada pelo companheiro para que outros homens a estuprassem, significa? A França vive um momento histórico?
“Tornar-se histórico é algo que ocorre com o tempo. Há indícios que apontam essa direção, como a qualidade da investigação, as provas irrefutáveis, a coragem de Gisèle Pelicot de tornar o julgamento público e a solidariedade em torno dela”, explica Christine Bard, professora de História Contemporânea na Universidade de Angers, para quem o contexto francês tornou o julgamento possível. “Ele é fruto da luta feminista iniciada na década de 1970 que se intensificou com o movimento #MeToo. Nossa sociedade já está em transformação”.
Momento crucial
O contexto ao qual Bard se refere é o período de 50 anos que separa o Julgamento de Bobigny, que abriu caminho para a descriminalização do aborto na França, e este 2024 quando, após anos denunciando figurões do cinema sem que nada acontecesse, atrizes finalmente tiveram seus relatos de assédio e abuso sexual levados a sério e o caso Pelicot escancarou a cultura do estupro. E isso aconteceu no mesmo ano em que a França se tornou o primeiro país do mundo a inscrever o direito ao aborto na Constituição.
“Bobigny permitiu uma mudança na legislação. Não sei se o caso Pelicot terá como consequência uma nova lei, mas espero que a atual, que permite a condenação de estupradores, seja aplicada. Comparando, os dois processos foram realizados de maneira exemplar e têm consequências para a sociedade francesa”, avalia Colombe Schneck, autora de “17 anos”, relato doloroso de um aborto feito na adolescência.
Realizado em 1972, o chamado Julgamento de Bobigny, um subúrbio de Paris, pôs o Estado contra uma menor de idade que havia feito um aborto após um estupro e contra as quatro mulheres que tentaram ajudá-la, incluindo sua mãe. As discussões levaram à descriminalização da interrupção da gestação três anos mais tarde, dando ao país um ícone feminista lembrado nas últimas semanas do lado de fora do Palácio da Justiça de Avignon: a advogada Gisèle Halimi, que defendeu as cinco.
Há quem acredite que o caso Pelicot também leve a mudanças na legislação francesa. Desde fevereiro, o projeto de lei 2170, de autoria conjunta de mais de 60 deputados e deputadas, tramita na Assembleia Nacional propondo a atualização do Código Penal para que a noção de consentimento passe a integrar nas definições dos crimes de estupro e agressão sexual. Mas a medida, que colocaria a França ao lado de Bélgica, Espanha e Dinamarca, não é unanimidade.
Sem unanimidade
Antoine Camus, um dos advogados de Gisèle Pelicot, declarou preferir a lei atual, que considera estupro “qualquer ato de penetração sexual, de qualquer natureza, ou qualquer ato oral-genital por meio de violência, coação, ameaça ou surpresa”.
Muitos grupos feministas se opõem a essa alteração, por acreditarem que o ônus da prova recairia sobre a vítima — explica Bard.
A organização Grève Feministe, que coordena as dezenas de grupos e instituições que participam das celebrações do 8 de Março na França, afirma que a lei precisa evoluir, mas que a resposta política precisa ser mais eficiente. Em 2022, a França contou 85 mil vítimas de violência sexual, mas apenas 7 mil condenações.
“É urgente um melhor apoio às vítimas para que as denúncias sejam recebidas de forma adequada, além de uma melhor estrutura dos serviços de saúde e mais recursos para prevenção e educação”, disse Huayra Llangue, representante da organização.
Mas se há algo que Gisèle Pelicot fez foi escancarar a ausência dos homens no debate sobre uma violência que é majoritariamente cometida por eles. Em um julgamento tornado público, toda a França viu a maioria dos acusados negar qualquer responsabilidade nos crimes. Um deles alegou ter sido manipulado por Dominique Pelicot e afirmou sem qualquer constrangimento: “Eu sou uma vítima.”