Sexta-feira, 27 de dezembro de 2024
Por Carlos Alberto Chiarelli | 30 de setembro de 2023
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul. O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.
Era uma daquelas tardes que na poesia tão própria do tango que consegue ser antigo sem envelhecer. Cheia de tristezas, vinha trazendo ou era trazida pelo “pingo, pinga” das ritmadas sacudidas, pouco maiores do que as de anteontem, quando até se mediu a velocidade enlouquecida do vento com velocímetro.
Tantos e não identificáveis ventos balanceando e tentando jogar com a bela parceria verde para sobreviver; isto é, ventos balançando e tratando de jogar com as abaladas estruturas, é verdade. Mais toras no muito encontradiças normalmente cediam à força da natureza e galhos viam a sua flexibilidade verde perder a elasticidade para sobreviver. Fortes, é verdade; mas sofridas face a uma geração da natureza que parecia desafiar a capacidade furiosa de ventos e chuvas. Enfim, para quem tinha um razoável índice auditivo, o sibilar de troncos e galhos que caíam e voavam trazia profunda inquietação.
Repito: era uma daquelas tardes com o gris do amor sempre lembrado e tão ferido. Não importava em que mês iniciara e em que mês terminara, nem em que ano. O amor não tem datas irrecorríveis fixas como duplicatas ou cheques emitidos.
Na véspera (ou nas vésperas), o noticiário nacional, quando anunciava o que ocorrera ou iria ocorrer, armava-se de um linguajar tirado das páginas de um vernáculo comum aos estudos de meteorologia e que não deixava em dúvida para saber o ocorrido ou o a ocorrer.
O mesmo até ocorreria num mudar o clima nesta terra de surpresas que passava a criar um panorama em que nuvens negras se viam iluminadas por descargas de tormentas elétricas. Surgem, estendido para que todos possam ver e dizer, ao deparar com a beleza alta que ocupa quase todo o espaço do teatro do firmamento, que erámos totalmente incapazes de fazer frente aos mandamentos dos céus. Este, o seu espaço, criara um verdadeiro teatro. Difícil não vê-lo. E também surgira como coadjuvante o arco íris. Era impossível não enamorar-se.
Depois de encharcado, preso no casacão escuro ou submetido ao milagre da capa impenetrável, tentamos reviver o ocorrido: a desarrazoada velocidade da natureza – ela parecia tão injusta – tirando tudo de quem tinha tão pouco e ficara sem nada. São barracas que viram escombros, são filhos e filhas andando sem destino à procura de pais que também não os conseguem encontrar. São olhos lacrimejantes do velho avô que os tem porque lhes disseram que o neto desapareceu. Enquanto isso, o vento/temporal furioso continua (e chega a estender no meio da roupa rasgada de quantos parecem sair das páginas de Les Miserables, de Balzac) sua fúria destrutiva. E, querendo acreditar mesmo no impossível, ela tem um atestado de óbito do filho na mão e ajoelha-se sobre a criança querendo ouvir batidas cardíacas que o bebê não consegue mais produzir.
O ciclone, que se agitava e agita, sibilinamente, na paisagem de uma natureza com a qual não costumava conviver, deleita-se quando, há 5 ou 7 dias, ouviu o barulho ritmado do “pingo pinga”. Fazia traçados com os reflexos musicais que, por translúcidos, nos mostravam toda a suave beleza da competição que rosas e orquídeas de perfume misturado e comum se revezavam a oferecer nas portas de uma florista ainda com esperança de que sobrevivesse aos golpes do vendaval.
Enfim, ventos, chuvas, a natureza em pânico, os perfumes revezados, tudo diante de um poder concreto e abstrato de titulares, que não podiam exercer o seu direito e nem queriam submeter-se aos seus deveres, parece gerar paixão e desencanto. E tudo isso e muito mais se tenta explicar porque as primeiras chuvas chegaram, e logo continuaram explicando porque as chuvas partiram.
(Carlos Alberto Chiarelli foi ministro da Educação e ministro da Integração Internacional)
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul.
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